05.07.2009, António Barreto Retrato da Semana, no Público
O inventário da queda de Sócrates ainda está por fazer. Mas já é possível enumerar alguns erros fatais.
Para o futuro da União e para as políticas europeias, as últimas eleições não tiveram qualquer importância. Presumia-se, justamente, que também não teriam para Portugal. Engano! Foram decisivas! Desde esse dia, tal como foi dito logo na noite eleitoral, passou a ser oficial que Sócrates não era invencível. O facto parece simples, mas não é. A partir dessa noite, tudo começou a mudar. Fidelidades foram postas em causa. A serenidade desapareceu. O nervosismo cresceu. Em duas semanas, foi o que se viu. Tudo correu mal, até um debate dito do Estado da Nação. Não há nada como os votos! Já muito vinha de trás, caso contrário os resultados eleitorais não teriam sido aqueles. Mas não era visível, nem oficial. Não havia provas. Passou a haver.
Um pouco mais de distância temporal permitir-nos-á estudar melhor este processo de elevação e queda de José Sócrates. Para a primeira, recordem-se alguns feitos. A rápida ascensão a dirigente nacional. A obtenção de uma inédita maioria absoluta. A criação de uma expectativa nacional com receptividade popular. E a aparência de uma determinação rara. Tudo com a ajuda providencial, como sempre nestes casos, de circunstâncias: a deserção de Guterres, a fuga de Barroso e as trapalhadas de Santana.
O inventário da queda ainda está por fazer. Mas já é possível enumerar alguns erros fatais. O primeiro, de carácter estratégico, foi o de declarar guerra a vários inimigos antes de ter planos preparados e tropas prontas. Foram os casos dos juízes, dos professores e dos médicos, entre outros. No dia de tomada de posse, com alarido e surpresa, atacou os magistrados. Todos. Culpados e preguiçosos. Depois, evidentemente, não conseguiu nem soube fazer a reforma da justiça. Nos dias seguintes, os professores levaram a sua conta. Mandriões e incompetentes. No fim do mandato, era a guerra civil e tudo está por fazer.
O segundo foi a ausência de um plano B. A intenção primordial era simples: pôr em ordem, durante três anos, as finanças públicas. Arranjar uma reserva, uma "folga", como lhe chamou mais tarde, para gastar no quarto ano e vencer eleições. A crise financeira espatifou tudo. A "folga" serviu para colar cacos, comprar pensos, reparar avarias e apagar fogos. Depressa ficou demonstrado que uns mereceram mais atenção do que outros e que a reserva não chegou para tudo, nem para toda a gente, muito pelo contrário. Esta ausência de plano B ficou a dever-se também à ausência de um plano sério. Sócrates é amigo do pragmatismo, que louva sem medida. Há um problema? Nem vale a pena pensar, resolve-se o problema. Um a um. Aquilo a que alguns chamam "uma visão", ou "uma ideia", e que muitos desprezam como inutilidade intelectual e bem-pensante, faz falta. Que ninguém duvide!
O terceiro foi acreditar nos mitos por si criados e na propaganda por si encomendada. Pensou sinceramente que a Europa fazia líderes nacionais. Por outras palavras, que o êxito do Tratado de Lisboa faria dele um primeiro-ministro português inamovível e invulnerável. Por uns anos, pelo menos. A essa ilusão acrescentou-se um erro de paralaxe: a certeza de que o êxito do Tratado de Lisboa era seu. A mitologia das obras públicas, da tecnologia e da "sociedade de informação" são outros exemplos destas crenças adolescentes, segundo as quais as grandes obras criam emprego, a tecnologia faz empresários e os computadores geram cultura e capacidades profissionais. Esta mitologia foi servida pela mais poderosa máquina de propaganda jamais criada em Portugal ao serviço de um governo. Assessores, consultores, agências, jornalistas, escribas, empresas especializadas e regras de comportamento e protocolo regularam a vida pública com uma minúcia inédita. Algures a meio do mandato, os governantes começaram a acreditar no que mandavam dizer de si e no que os seus servidores inventavam para os bajular. O resultado era previsível: desligaram do país que não se resumia à criação dos especialistas. Foi este clima que explicou, em parte, a maneira desastrada como o primeiro-ministro se defendeu mal nos processos que o atingiram mais directamente, incluindo o do Freeport.
O quarto foi ter povoado o Conselho de Ministros de gente menorizada. Ou transformada em menor. Mesmo os bons ministros se sentiam constrangidos, diminuídos e serventes, o que negam em público, mas reconhecem em privado. Um gabinete destes concentra todos os méritos no "chefe", faz dele a fonte de inspiração. Torna-o quase um herói. Mas também o contrário: faz dele a origem de todos os males. Transforma-o no único culpado dos erros.
O quinto foi a confusão entre autoridade e rispidez. A primeira, quando serena, permite a flexibilidade e a correcção. É irmã da segurança. Se abrasiva, é sinal de insuficiência e de falta de experiência. Provoca irritação em todos, incluindo no próprio. Cria um clima de zanga colectiva. Substitui o pensamento pelos berros. Mantém fiéis pelo medo, não pela fidelidade.
O sexto foi a convicção de que se pode escolher pessoalmente os capitalistas e os empresários. A ideia de que o mercado se garante e desenvolve graças a intervenções pessoais. A esperança em que relações pessoais e circunstanciais com investidores são duráveis. A confiança depositada nos que vivem encostados ao Governo. A certeza de que uma convergência de interesses e de favores, entre empresários e políticos, pode ser a base de um sistema. Nos últimos meses tem estado à vista o carácter efémero desta crença.
O sétimo foi a cedência às "reformas fracturantes". As reformas, por via legal, dos costumes, da sexualidade e dos modos de vida passaram a ser, na fantasia do primeiro-ministro e dos cortesãos, o seu passaporte à esquerda, a compensação das suas políticas económicas e laborais. Como era de esperar, foi o PS que saiu fracturado.
Será ainda possível corrigir estes erros? Como diz a "Traviata", quando Alfredo quer reparar os erros: "É tarde"!
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