26 julho, 2009

Ainda e agora o Terreiro do Paço


26.07.2009, Paulo Ferrero, Bernardo Ferreira de Carvalho, Jorge Santos Silva, Júlio Amorim, Pedro Gomes e Fernando Jorge

A campanha eleitoral não pode perturbar a discussão serena mas profunda do futuro da praça

Muito se tem falado sobre o Terreiro do Paço. É oportuno reflectir agora sobre o decurso dos acontecimentos.
Primeiro, sem que ninguém se apercebesse do que verdadeiramente estava em causa, foi apresentado o projecto de requalificação de espaço público, entregue, sem concurso, pelo dr. José Miguel Júdice, então indigitado para presidente da futura Sociedade Frente Tejo, S.A., ao ateliê do arq. Bruno Soares.
Aquela sociedade de capitais públicos, sem participação do Município de Lisboa, só veio a ser constituída em 9.7.2008 (D.-L. 117/2008) para se ocupar da frente ribeirinha, tendo-lhe sido atribuídos "poderes excepcionais, designadamente em matéria de contratação pública e de utilização, fruição e administração de bens do domínio público". As suas funções nunca ficaram claras já que o Conselho de Ministros tinha decidido (Resolução de 15/05/08) que fosse a Parque Expo a assegurar "os serviços de coordenação técnica e gestão integrada das operações" de requalificação e reabilitação urbana da frente ribeirinha. O certo é que a Frente Tejo, S.A., tem uma existência formal, quatro administradores, poucos trabalhadores e muitos consultores. Que contratos foram celebrados, quem os assinou e quais os respectivos custos, é questão que nunca foi esclarecida. Quem é que conduziu todo o processo, continua a ser um enigma.

Apolémica estalou quando, em sessão privada da CML (8.5.09), foi conhecido o projecto de Bruno Soares. Logo aí se levantaram vozes discordantes, num coro de protestos que se propagou à sociedade civil, gerando um movimento de contestação que ainda não terminou. Uma das principais críticas incidia sobre o desenho do pavimento, em losangos e em tons fortes que destruíam a estrutura e a simetria iluminista do Terreiro do Paço. O traçado do percurso que pretendia prolongar a R. Augusta até ao rio foi rejeitado por destruir a coerência da praça. Outros criticaram ainda as "cartas de marear" nos passeios laterais e o tratamento dado ao Cais das Colunas por se tratar de intervenções contemporâneas que introduziam elementos dissonantes no conjunto. O mais absurdo da proposta traduzia-se na sobreelevação da praça, com um desnível de cerca de um metro, que criava um fosso entre a praça e o rio e obrigava à construção de uma bancada em degraus que terminava em cima da faixa de rodagem.
Os serviços da CML deram parecer negativo, criticando a diversidade de formas e materiais, que comprometia a unidade do espaço e a sua utilização, e pondo em causa a elevação da placa central por criar problemas de acessibilidade e de segurança. Parece que o mesmo fez o Igespar, mas privadamente.
Estranhamente, poucos foram os que defenderam o projecto original, nem sequer aquele que escolheu o seu autor. O presidente da CML usou o voto de qualidade para fazer aprovar o projecto em Maio passado em reunião pública de CML, que acabou por passar com a abstenção do PCP, posição nada condizente com as críticas anteriormente formuladas.
Face ao movimento cívico gerado, os decisores foram obrigados a recuar e o autor do projecto comprometeu-se a proceder à sua reformulação, tendo apresentado, em Julho, o novo desenho da praça com soluções "mais ajustadas".
Desde logo, foi atenuado o forte impacto visual dado pela malha dos losangos. O losango em mármore verde que marcava a estátua de D. José desapareceu dando lugar a uma circunferência em pedra clara. Tal como o corredor central que ligava o Arco ao Cais das Colunas, criticado por dividir a praça em duas. A sobreelevação da praça diminuiu para metade, sem que fosse explicado porquê. Ou o desnível inicial tinha razão de ser e devia ser mantido, ou, não tendo, só podia ser eliminado por não ser admissível a construção de barreiras numa praça que nunca as teve e é percorrida livremente, sem entraves ou soluções artificiosas tais como degraus ou rampas.
Desapareceu ainda o semicírculo, rematado por seis degraus, que prolongava o Cais das Colunas para dentro da praça, alterando profundamente a memória histórica daquele local mítico. A linha que separa agora a placa central da faixa de rodagem é contínua e paralela ao rio e a ligação faz-se, ao centro, por dois conjuntos com dois degraus cada, e por rampas nas laterais. Junto ao torreão poente o desnível passou para meio metro, vencido por dois degraus, e do lado nascente não existe desnível significativo. Mantiveram-se as "cartas de marear" nos passeios laterais, em linhas vermelhas e pretas. As esplanadas situar-se-ão nesses passeios, a alargar, mas nada se sabe quanto ao seu programa, que tipo de mobiliário urbano, etc.
Com a discussão do "novo" projecto num sábado de praia, pareceu ter sido dado por findo o tão falado debate público, imposto por aqueles que se insurgiram veementemente quanto à condução do processo. Mas o projecto agora em fase de execução continua a suscitar-nos as maiores dúvidas e os procedimentos continuam a não ser transparentes. Não o podemos aceitar.
Vejamos: o Terreiro do Paço nunca teve degraus ou bancadas que dificultassem a ligação da praça ao rio, nem há justificação para a sua introdução agora. Sempre existiram diferenças de cotas e no entanto a praça tinha originariamente uma configuração plana, condizente com o traçado racionalista dos edifícios. Portanto, através de um pequeno empeno será possível estabelecer uma concordância de cotas que se traduza numa inclinação suave até ao rio de que ninguém se irá aperceber, dada a escala grandiosa da praça.
Impõe-se, sim, a remoção de sucessivas camadas de pavimentos que, colocados ao longo dos tempos, desqualificaram a praça, na procura do terreiro originário que ali existiu. É dispensável um desenho de autor que quer deixar uma marca contemporânea própria num local que apenas deve ser recuperado na sua dimensão histórica, ainda que adaptado a uma vivência actual.
A circulação automóvel proposta no projecto mantém a faixa de rodagem junto ao rio, barreira que dificulta o acesso ao Cais das Colunas. Dir-se-á que não é possível eliminar a ligação entre a Ribeira das Naus e a Infante D. Henrique, mas cabe perguntar se não seria preferível que se efectuasse pelas laterais, contornando a praça. Aliás, sempre haverá circulação automóvel nas laterais, ainda que restrita aos veículos oficiais que servem os ministérios que aí permanecem.

Mais uma vez, o processo esteve errado e a ordem foi subvertida: primeiro a decisão, depois o projecto e por último, e a muito custo, o debate. O resultado? Uma solução altamente controversa que acabou por ter de ser atamancada pelo próprio autor.
Comece-se pela discussão sobre o tipo de intervenção a desenvolver na Baixa Pombalina, que deveria decorrer em paralelo com a elaboração do Plano de Pormenor em curso. Nem se compreende que possa ser de outra forma, obrigando a que o referido plano acabe por ter de integrar tudo o que tiver sido construído no Terreiro do Paço e na frente ribeirinha. As funções, os materiais a utilizar e a diversidade de soluções para o espaço público têm de resultar de um estudo do conjunto da área de intervenção e não serem um simples somatório de projectos diversos entregues à criatividade de arquitectos de renome, escolhidos sem concurso.
Como se compreende que o projecto tenha sido adjudicado por decisão, ao que parece individual, de alguém que nunca assumiria funções na dita Frente Tejo, S.A., que, à data, aliás, não existia sequer? Como se explica a sua constituição quando toda a gestão dos projectos da Frente Rio é assegurada pela Parque Expo? Os tais "poderes excepcionais em matéria de contratação pública e de utilização de bens do domínio público" explicam muita coisa já que a Parque Expo apenas detém esses poderes na respectiva área de intervenção e há a desculpa de que é preciso "agilizar os procedimentos". Daí a contratação avulsa de numerosos prestadores de serviços, todos com vontade de deixar uma marca individual na nossa cidade. A articulação entre o trabalho desenvolvido por aqueles e os próprios serviços camarários é deficiente, ou inexistente. Os custos, esses, são dados nunca revelados mas pagos por todos nós.

Antes que seja tarde, há que esclarecer até que ponto o que está feito condiciona irreversivelmente o destino do Terreiro do Paço. Há obras de infra-estruturas a decorrer na praça e, por isso, melhor será que a questão seja desde já suscitada. A nova versão do projecto apresentado mantém a sobreelevação da praça em mais de 50 cm e é preciso esclarecer se tal decorre de condicionamentos resultantes de obras feitas pela SimTejo e pela EPAL, ou se é uma opção do autor. Numa entrevista ao PÚBLICO (1/7/2009), este salientou a descoordenação entre os diferentes projectos - o que é inconcebível -, mas admitiu que seria possível, mesmo assim, encontrar solução que eliminasse os degraus. Em que ficamos?
Por outro lado, as obras em curso introduzem uma delimitação decisiva na circulação do peão e do automóvel ao avançar com a colocação dos lancis e das bases dos pavimentos. Se tal escolha resultou de estudos de tráfego e de prévia definição de usos e funções é coisa que não se sabe, porque tais estudos, a existirem, nunca foram divulgados e debatidos.
Daí que a pretensa discussão pública seja um artifício para acalmar os ânimos e tornar "aceitável" um processo que é tudo menos transparente e participado. A campanha eleitoral que se avizinha renhida não pode perturbar a discussão serena mas profunda do futuro do Terreiro do Paço que a todos nós diz respeito.

Membros do Fórum Cidadania Lx


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