11 julho, 2009

Abay Admassu, a mulher que disse não


10.07.2009, José Vitor Malheiros,Público

Abay Admassu nasceu em Setembro de 1974, numa aldeia próxima da cidade de Awash, no estado de Afar, no Norte da Etiópia oriental. O dia exacto não sabe. Não é costume tomar-se nota do dia de nascimento das crianças, nas zonas rurais da Etiópia. Nem tomar nota, nem festejar os aniversários. Contam-se as estações e os anos que passam, às vezes recorda-se que o nascimento teve lugar depois desta ou daquela batalha, mas é tudo. Os registos escritos são escassos porque só dois por cento da população da região sabem ler e escrever.
O deserto de Afar é uma das regiões mais quentes e mais secas do planeta e é difícil encontrar uma paisagem mais inóspita. A areia, os troncos retorcidos das escassas árvores, as ervas, as pessoas, as casas e as tendas, os animais, têm todos a cor da poeira clara que cobre tudo. A seca é o estado natural da região, que acolhe mais de um milhão de afares, nómadas em transição para a sedentarização, dedicados à pastorícia, donos de raras vacas e cabras. A paisagem desolada aparece nas fotografias com uma calma perfeição monocromática e as mulheres são de uma beleza e elegância lendárias.
A realidade é menos perfeita: uma em cada três crianças morre antes de chegar aos cinco anos, a diarreia é endémica. Os afares são um dos povos mais pobres de um dos países mais pobres do mundo. E as mulheres não podem tomar parte em qualquer decisão nem sequer ouvir as discussões dos homens mas têm a seu cargo todos os trabalhos: ir buscar água, cuidar das crianças, tratar dos animais, tratar da alimentação, da roupa e até da construção das casas.
Até aos sete anos, Abay Admassu teve a vida normal de uma criança afar: levar os animais a pastar, ir buscar água, ir buscar lenha. Aos sete anos, foi viver para casa de um padrinho em Awash, para poder frequentar a escola da cidade.
Quando chegou aos oito anos, a sua mãe, que vinha visitá-la à cidade com frequência, começou a dizer-lhe que tinha chegado o momento de ser circuncidada. E Abay disse que não.
"Naquela altura, eu sabia bem o que é que a circuncisão queria dizer", conta-nos Abay, numa entrevista feita por mail, com a ajuda de uma intérprete (além do afari, a sua língua-mãe, e do amárico, Abay também fala inglês, mas não se sentiu à vontade para fazer a entrevista sem intérprete e a qualidade das comunicações não permitiu usar o telefone). "A minha mãe insistia imenso comigo para eu me deixar circuncidar. Começou quando eu tinha oito anos e foi insistindo cada vez mais." A mãe explicou-lhe que uma rapariga não circuncidada era impura e não poderia casar, e que nunca seria aceite pela sua comunidade. Mas Abay, com uma determinação rara numa rapariga da sua idade, continuou a dizer que, fossem quais fossem as consequências, não iria deixar.
"Segundo a tradição, as raparigas devem ser circuncidadas antes de chegar aos 12, 13 anos. A minha mãe vinha visitar-me muitas vezes à cidade e às vezes levava a mulher que devia fazer a operação, mas eu resistia sempre. Um dia, quando eu tinha 11 anos, a minha mãe chegou com a mulher e eu vi que dessa vez ela estava mesmo decidida a não aceitar nenhuma desculpa. Fugi e escondi-me em casa de uma vizinha que eu sabia que era contra a mutilação genital feminina (MGF). A minha mãe chegou a mandar a polícia a casa da vizinha, mas ela não me entregou. E consegui escapar. Mais tarde, quando já estava no liceu, a minha mãe deixou de insistir comigo."
Quando tinha 17 anos, Abay começou a colaborar com a organização não-governamental americana CARE, dedicada ao combate à pobreza e à promoção das mulheres, que mantinha na Etiópia uma campanha de mobilização contra a MGF. "Acabei o liceu ao mesmo tempo que trabalhava na CARE, como mediadora junto da minha própria comunidade", explica. "A CARE foi a primeira organização que tentou começar a explicar às mulheres os riscos da MGF. O trabalho era muito difícil. Não era possível chegar a uma aldeia e começar logo a falar de MGF, ainda que fosse esse o nosso objectivo. Era preciso abordar a comunidade com outras ideias, com outros projectos de desenvolvimento. Só ao fim de três ou quatro anos de trabalho é que pudemos começar a falar da circuncisão."
Nos primeiros cinco anos que trabalhou na sua comunidade de origem, Abay fundou uma escola e três centros de saúde, abriu um poço e lançou um programa de desenvolvimento agrícola. Muito lentamente, começou a conquistar a confiança das mulheres e pôde começar a discutir com elas o problema da MGF - um tema rigorosamente proibido mesmo numa conversa entre mulheres. Inevitavelmente, o facto chegou aos ouvidos dos homens e a reacção foi violenta. "Diziam que nós éramos traidores a soldo de estrangeiros que queriam destruir a nossa religião e a nossa cultura. Fui ameaçada, agredida e uma vez apontaram-me uma arma e disseram-me que tinha de parar o que estava a fazer. A reacção foi muito violenta."
Mas Abay não deixou de falar às mulheres, nem de tentar convencer os homens.
"As pessoas que defendiam a MGF insistiam que era parte da nossa religião, parte do islão", explica Abay Admassu. "Por isso nós tentávamos conquistar para o nosso lado líderes religiosos, funcionários governamentais, os anciãos das aldeias e, através deles, explicar às populações que não havia nada no Corão sobre mutilação genital. Os líderes religiosos tinham um papel fundamental, porque eles são mais ouvidos do que qualquer outra pessoa. Era fundamental fazer deles nossos parceiros no combate à MGF. Abríamos o Corão e mostrávamos que não há lá nada sobre MGF. Era um trabalho difícil, mas muito interessante."
Mas, apesar dos progressos na conquista das consciências, a circuncisão continuava a ser praticada. Foi então que Abay Admassu teve a ideia audaciosa que permitiu acelerar o seu trabalho de doutrinação: pediu a uma mulher que a deixasse filmar uma operação de circuncisão.
Abay fez o filme e mostrou-o aos anciãos da aldeia. Nunca nenhum deles tinha visto uma operação e o filme mostrou-lhes que a "circuncisão" feminina não tinha nada a ver com a circuncisão masculina a que os rapazes são submetidos como rito de entrada na vida adulta. Os anciãos ficaram chocados. Convocaram uma reunião de emergência, onde discutiram, durante quatro dias a fio, a tradição frente a frente com a compaixão. E acabaram por decidir, numa votação ganha por 15 votos contra dois, que a MGF deixaria de se fazer na aldeia para sempre.
"Depois de ter visto isto, não podia deixar as minhas netas submeterem-se à operação", explicava Haji Waldo, de 70 anos, um dos decisores.
Para Abay, depois de conseguir fazer passar a mensagem de que a MGF não é um mandamento religioso e depois desta vitória na sua aldeia, o caminho estava aberto.
O caminho não foi apenas o alargamento do combate à MGF, mas do combate pela participação das mulheres. Com a colaboração de Abay, a CARE ajudou a fundar uma associação local contra a prática da MGF, onde homens e mulheres discutem como iguais e que é dirigida por uma mulher.
Depois de trabalhar para a CARE durante oito anos, Abay entrou para a escola de enfermagem e obteve o seu diploma. Actualmente vive em Adis Abeba, é casada e tem dois filhos, trabalha como enfermeira numa empresa estatal de água mineral e recomeçou a estudar: o seu objectivo é um diploma em saúde pública.
"Uma das coisas que me dão imensa alegria", diz Abay, "é que a atitude da minha mãe em relação à MGF mudou radicalmente. Uma vez, uma mulher foi ter com ela a oferecer-se para circuncidar a minha filha e ela disse-lhe que nem pensasse nisso e que estava muito arrependida por ter tentado circuncidar-me. Disse-lhe que tinha feito isso só porque era muito ignorante, mas que agora tinha percebido as coisas e tinha mudado de opinião. Isso dá-me imensa alegria".
O que vai fazer quando acabar o seu curso de saúde pública? "O meu objectivo é acabar com a prática da MGF. Enquanto os meus filhos eram pequenos (a menina tem nove e o rapaz sete), dediquei-me principalmente a eles e à enfermagem, para os poder acompanhar mais de perto. Mas agora já estão mais crescidos. Quando acabar o curso, vou regressar ao combate à MGF."



Sem comentários: