A tentativa de socialização do êxito de Cristiano Ronaldo
Cristiano Ronaldo foi considerado, pela FIFA, o melhor jogador de futebol do mundo no ano de 2008. O título segue-se a vários outros de importância e prestígio crescente. O homem tem talento. É reconhecido. Talvez tenha mesmo génio a fazer o que faz. Muito bem. Entre os portugueses, Eusébio e Luís Figo tinham alcançado êxitos semelhantes. São homens de excepção e jogadores extraordinários. Mesmo quem não goste ou não frequente os desafios de futebol rende-se facilmente perante a chispa, o engenho e o merecimento daquele futebolista. E de seus dois pares. Numa altura em que centenas de jogadores de futebol portugueses, naquela que é uma verdadeira nova indústria de "nicho", se exibem nos estádios de todos os países europeus, um deles chegou ao cume. Sendo o futebol o que é, muitos foram os que jubilaram com este triunfo. É natural.
Não faltou quem tentasse de imediato generalizar o mérito. Ou socializar o êxito. A família, os amigos, o clube da Madeira, os "olheiros", os treinadores, o Sporting, as escolas de futebol, os professores, as equipas técnicas, a Federação, o inevitável secretário de Estado, o Governo e os jornalistas desportivos: todos passaram a merecer honras de genialidade. Todos reivindicaram uma quota-parte de responsabilidade. Ouvindo e lendo o que se disse, o talento do homem quase desaparecia. Considerar que se trata do triunfo de um sistema, de uma organização e de um povo é um puro esbulho. A verdade é que estamos perante uma aptidão individual excepcional e que, como tal, deve ser aplaudida. Mas há, entre nós, quem tenha por hábito enriquecer sem justa causa, para não dizer à custa de outrem. Misérias do mundo, nada de novo.
Mais interessante e muito mais deprimente foi a maneira como a discussão e os comentários que se seguiram procuraram de seguida alargar o problema e divagar sobre "este país". Há um grande partido, formado por optimistas bacocos, que deu largas à sua cantilena. O raciocínio, se assim se pode dizer, é simples: em muitos sectores, somos os ou dos melhores do mundo. Um Nobel, um cientista, uma fadista, um jogador de futebol, um arquitecto e um atleta: aí estão exemplos do que somos e podemos ser. Sendo assim, por que razão anda por aí tanta gente a dizer mal de nós? Por que gastam os portugueses tanto tempo a flagelar-se e a queixar-se quando a glória está ao alcance da mão? Cita-se um conjunto incerto e não identificado de pirrónicos invejosos que não suportam o êxito de alguém e que supostamente consideram que somos os piores do mundo. Por que há tantos políticos, comentadores, intelectuais, economistas, trabalhadores e "gente normal" a dizer mal do país? As suas perguntas ficam sem resposta. Mas logo acrescentam os crédulos: em vez disso, temos é de dar sinais de esperança, pensar positivo, puxar para cima e mostrar a toda a gente que podemos estar entre os melhores do mundo. Podemos todos ser Cristianos Ronaldos! Podemos todos ganhar o Nobel!
Estes profissionais do optimismo não resistem. Uns são pagos para isso, nas redacções, nos gabinetes dos ministros ou nas agências de comunicação. Outros sonham com glórias vistosas, efémeras sejam elas. Sonham com uma voz que se ouça no mundo. Sonham com uma excepção que não merecem. Qualquer derrota, normal e frequente no mundo inteiro, é motivo para as mais obscuras lucubrações sobre o destino fatal do país. Do mesmo modo, a vitória de um concidadão presta-se aos mais surpreendentes desvarios sobre o génio português. É uma maneira de se ser infeliz. É o modo de ser dos saloios. No próprio dia em que Cristiano Ronaldo foi ungido do seu título, a RTP oferecia-nos um fantástico debate, dito de Prós e Contras, durante o qual foram pronunciados todos os disparates imagináveis. Na presença, como sempre, de um angélico e extasiado secretário de Estado, um conjunto de pessoas serviram-nos os lugares-comuns habituais. Todos podemos fazer igual. Há, em Portugal, génios e talentos de sobra. A ninguém ocorre, evidentemente, aludir a um êxito excepcional, mil vezes mais importante do que qualquer prémio, como seja a descida brutal da mortalidade infantil, que colocou Portugal, nesse domínio, num dos primeiros lugares no mundo. A diferença entre esta vitória e a de Cristiano Ronaldo é que a última é um feito de talento pessoal e de excepção, enquanto a primeira resulta do trabalho de centenas ou milhares de pessoas, de organização, de trabalho meticuloso, de planeamento cuidado e de sacrifício humilde. Este é um feito de muitos médicos e enfermeiros, de paramédicos e condutores de ambulâncias, de analistas e administradores. E, sobretudo, de vários Governos, que fizeram o que de melhor deles se espera: deixar trabalhar, não pretender meter-se em tudo e não procurar louros eleitorais.
Durante décadas, Portugal foi um país singular. Distinguia-se dos outros. Pelo analfabetismo, pela pobreza, pela duração de uma ditadura, pela censura, pela polícia política e por outros feitos de igual calibre. Gradualmente, o país foi-se transformando e foi ficando "um país como os outros". Com cada vez menos "história", que, como terá dito Tolstoi, é o próprio das pessoas felizes. Com bons e maus, excelentes e péssimos. Com estúpidos e inteligentes, como em todo o sítio. Com êxitos e falências, como deve ser. Só se espera que seja sempre assim. Sempre e cada vez mais. Que os portugueses não queiram de novo distinguir-se! Que ambicionem pelo dia em que, sem prémio Nobel, a maior parte dos alunos tenham notas decentes a Matemática e Português. Que lutem pelo dia em que um processo no tribunal não dê, durante anos, notícias em todos os jornais do mundo, mas que, simplesmente, chegue à sentença sem ter história. Que trabalhem o necessário para que não tenham os mais baixos rendimentos da Europa. Que sejam habitualmente recompensados ou punidos, quando merecem. Nesse dia, talvez outro Cristiano volte a ganhar. E outros indispensáveis heróis surgirão. Mas o disparate que se seguirá será bem menor.
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