17.06.2009, Ana Benavente, no Público
A derrota do PS é consequência das políticas cada vez mais afastadas da matriz do socialismo democrático
Nas eleições europeias do dia 7 de Junho houve surpresas (a maior foi a vitória do conservador PSD), mas houve também derrotas anunciadas.
A derrota do Partido Socialista decorre, na minha opinião de socialista crítica, das políticas destes últimos quatro anos, cada vez mais afastadas da matriz do socialismo democrático, da falta de respeito que hoje se sente pelo primeiro-ministro (veja-se a última manifestação da PSP) e do estilo autoritário e altivo que o Governo insiste em repetir. Mas esta derrota tem raízes mais fundas e decorre, sobretudo, da incapacidade que o Governo e o partido que o apoia têm demonstrado em compreender a natureza da actual crise económica, social e política, limitando-se a tomar múltiplas medidas imediatas e de urgência, dentro da lógica da própria crise.
Já ouvimos afirmar, até à náusea, que estes resultados não prefiguram os das próximas eleições legislativas, mas é muito preocupante que Sócrates já tenha começado a agitar o espantalho da eventual futura "ingovernabilidade" do país - explorando medos e inseguranças dos cidadãos. São argumentos perigosos, mas muito ouviremos falar da dita "ingovernabilidade" nos próximos tempos.
Entretanto, os dias são férteis em desastres e já ouvimos o ministro da Agricultura repetir, tal como tantas vezes tem sido dito sobre os professores e os sindicatos, que os agricultores descontentes, que se manifestaram na Feira da Agricultura de Santarém, "estão a ser instrumentalizados pela CAP". Fez-me recordar que, antes de 1974, qualquer luta pela liberdade era "a soldo de Moscovo"! O pior cego é o que não quer ver e temo que o Governo fique prisioneiro da sua actual e errada teimosia. É mau para o país e é mau para o PS.
As derrotas eleitorais socialistas, com ou sem aumento de votação nas outras esquerdas, aconteceram em vários países europeus. E não foi por serem governo! Veja-se o caso da França, em que os socialistas tiveram resultados eleitorais miseráveis.
A questão é, por isso, bem mais profunda; não é táctica nem episódica nem apenas nacional; é uma questão decisiva para o futuro das sociedades em que vivemos e para a necessária "democratização das democracias".
E não se dirige só ao PS, mas às esquerdas europeias.
Há 10 anos, em Junho de 1999, Tony Blair, do Reino Unido, e Gerhard Schroeder, da Alemanha, publicaram uma declaração conjunta da social-democracia europeia que ficou conhecida como "terceira via" (que já vinham pondo em prática). A "terceira via" traduziu-se num compromisso com o neoliberalismo, numa posição acrítica do novo capitalismo globalizado, numa leitura errada das sociedades europeias. A avaliação obsessiva de tudo e de todos, os rankings e outros benchmarking, vieram substituir os valores da justiça, da equidade e da cidadania. Esta "terceira via" foi considerada moderna e atraente por muitos socialistas europeus. Suspeito que seja a "Bíblia" da direcção actual do PS português.
Mas a "terceira via" falhou e os resultados estão patentes, entre nós, nas políticas laborais e nas políticas educativas, para citar dois domínios estruturantes. E na crise económica, social e política, que não veio só de fora porque já estava cá dentro.
Deixaram assim os socialistas de constituir uma alternativa válida, lúcida e sustentada aos liberais e aos conservadores.
Já este ano, foi apresentado em Londres e em Berlim um novo documento estratégico da autoria da vice-presidente do SPD alemão Andrea Nahles e do deputado do Labour britânico Jon Crudas, com outros co-autores, intitulado A Boa Sociedade.
O objectivo é o de revitalizar as esquerdas democráticas propondo uma nova ordem económica e social, bem como outro estilo de política. Ora aqui está o cerne da questão. É tempo de reformular os projectos de sociedade, o que só será possível com amplos e urgentes debates e alguns consensos.
O "deus" mercado mais não deve ser que um instrumento ao serviço das pessoas e não o contrário. A Europa impotente face à crise e imersa em burocracia tem que dar lugar à construção da Europa social, capaz de regular a ordem económica e social e de contribuir para a sua democratização.
As propostas contidas no documento A Boa Sociedade exigem debate e reflexão e apelam à participação cívica de todos. Cito algumas numa tradução livre:
- restabelecer o primado da política e impedir a sua subordinação aos interesses económicos
- renovar a relação entre o indivíduo e o Estado enquanto parceria democrática
- reconstruir um Estado democrático que preste contas aos cidadãos e que reforce as instituições a todos os níveis
- alargar e defender os direitos individuais de cidadania
- impor de novo a prioridade do bem comum (educação, saúde, etc.) face aos interesses do mercado,
- possibilitar bom trabalho para todos
- aprender a viver em sociedades multiculturais que vieram para ficar, colocando as necessidades das pessoas e do meio ambiente acima do lucro.
Trata-se de clarificar os valores socialistas, aprendendo com a experiência e desafiando as esquerdas europeias a reforçar uma Europa fiscalizadora da "economia de casino" em que os riscos são para os trabalhadores e os lucros para o grande capital, sem rosto nem poiso certo (vejam-se os offshores).
Os portugueses estão cansados dos abusos do Estado, zangados com a falta de transparência da política (quanto mais se afirma, menos se pratica); perguntam-se "se isto tem conserto", estão assustados com o desemprego e a (nova e velha) pobreza. Precisamos de esperança. E essa não virá de nenhum "salvador" nem de um hipotético e desastroso "bloco central" e ainda menos da direita conservadora. Daí não virão bons ventos nem respostas positivas para a actual crise.
O apelo urgente é às esquerdas. Uns porque perdem (e como ficará o PS depois desta deriva?) e outros porque ganham e têm a responsabilidade de ouvir quem neles votou. Os votos não são de nenhum partido, são dos cidadãos. Por isso, as pessoas estão primeiro e é o nosso futuro colectivo que está em jogo. Assumir que a globalização faz parte das nossas vidas e apoiar o dr. Barroso porque é português, não só é provinciano como é ofensivo. Quem são então os "europeus"?
P.S. - A senhora ministra da Educação está cada vez mais zangada com o mundo (vi na TV) e orgulhosamente só. É triste... mas não é fado!
Socióloga. Militante do Partido Socialista
1 comentário:
Já chegam tarde as propostas socialistas aventadas no libelo "A Boa Sociedade". Essas reivindicações são já de outros que tomaram esse território ideológico abandonado pelo socialismo de "terceira via". Em Portugal o Bloco de Esquerda e a CDU há muito vogam nesses mares, que agora são deles. A crítica ao neoliberalismo, que antes se abraçou, chega já tarde. Tarde demais.
AMCD
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