24.06.2009, Teresa de Sousa, no Público
Neda é o símbolo universal de um movimento imenso e forte de gente que hoje vemos como igual a nós
1.O que se sabe da jovem de cabelo negro e jeans azuis que morreu no sábado numa rua de Teerão, vítima de uma bala assassina, é que se chamava Neda, que tinha 26 anos, ou 27, que era estudante de Filosofia, que morreu em segundos, nos braços de alguém que lhe pedia para não ter medo. As imagens da sua morte quase irreal são um nó na garganta que não se desfaz. As autoridades quiseram silenciar o seu enterro, como se isso pudesse apagá-las. Aconteça o que acontecer daqui para a frente no Irão, seja qual for o número de vítimas da repressão do regime teocrático ou o número de dias da resistência iraniana, Neda é o símbolo universal de um movimento imenso e forte de gente que ontem talvez ainda olhássemos com a reserva do nosso olhar ocidental e que hoje vemos como igual a nós.
O que há de mais forte e de mais impressionante no levantamento popular que invadiu as ruas das principais cidades do Irão é a sua única e simples reivindicação: "Queremos o nosso voto contado". É uma reivindicação legítima até num regime como o dos mullah. Dificilmente pode ser assacada à manipulação de "forças estrangeiras" ou a um bando de conspiradores "inimigos do povo". Segue escrupulosamente as regras do jogo do regime. Os factos tornam-na cada dia mais indesmentível. É um imenso traço de união entre gente que pode ter ideias diferentes sobre o futuro mas que se acha espoliada sem razão do direito mínimo de ser contada.
É isso porventura que desespera o poder instituído - a falta de argumentos.
2.Há milhões de Nedas nas ruas de Teerão. São mulheres jovens, educadas, cuidadas, em cujos rostos o lenço elegante se harmoniza com os óculos escuros de marca, que empunham cartazes e que gritam palavras de ordem através dos megafones. São livres, seja qual for a medida dessa liberdade. Acumulam revolta mas também acumulam força. Foram uma das principais bases eleitorais, se não a principal, do antigo Presidente reformista Muhammed Khatami, eleito em 1997 e reeleito em 2001. Anne Applebaum lembrava no site da Slate que a sua luta não é de agora. São elas que mantêm a campanha "por um milhão de assinaturas" lançada em 2006 para exigir o fim das leis que discriminam as mulheres - reclamando direitos iguais no casamento, no divórcio, na herança, nos tribunais. Reviram-se na figura de Zahra Rahnavard, a mulher académica do candidato Mir Hossein Mousavi, que foi um dos seus maiores trunfos eleitorais. São uma tremenda ameaça para o regime de Teerão, porque representam a face mais insuportável (para eles) da modernidade que não podem aceitar porque é o seu verdadeiro inimigo.
Neda não ameaçava ninguém. Foi abatida a tiro. As mulheres de Teerão vão ter medo. Podem até voltar para casa. Regressarão porque Neda representa aos seus olhos a profunda imoralidade do regime. A sua força continuará a ser alimentada pela sua cegueira fanática e pela miríade de movimentos e de redes que nenhum regime conseguirá fazer parar.
Elas são uma das faces da imensa classe média iraniana que quer viver a sua vida e os seus sonhos, que quer alargar os seus horizontes e fazer os seus negócios. Que não precisa de ser revolucionária para estar farta de não poder realizar as suas aspirações individuais.
Que está a experimentar a sua força nas ruas. Que pode recuar mas voltará. Não se pode suprimir pela força a parte mais dinâmica de uma sociedade nem, no médio prazo, será possível conjugar as regras de um regime teocrático com as exigências banais da modernidade.
É esse o drama dos ayatollah. É essa a guerra que travam na cúpula do regime. Entre os que reconhecem que é preciso mudar alguma coisa para tentar que tudo fique mais ou menos na mesma e os que advogam o endurecimento do regime.
3.Ontem, Barack Obama subiu o tom das suas críticas a Teerão. Condenou firmemente a brutalidade do regime e juntou-se ao luto dos iranianos pelas suas vítimas. Voltou a dizer que os EUA não interferiam nos assuntos internos do Irão.
Quando Mohamed Ahmadinejad ganhou as eleições presidenciais em 2005, ele era o "candidato" da administração americana. Em Washington, prevalecia nessa altura a doutrina do quanto pior melhor. A forma mais fanática e fechada do regime dos mullah permitiria manter a ficção do "eixo do mal" e legitimava a política da ameaça do recurso à força. Nada é, pois, mais confrangedor do que assistir à indignação de algumas vozes republicanas e neocons contra a inacção do Presidente Obama perante as multidões que clamam incansavelmente pela liberdade.
Mas não é esta a questão fundamental. Nem se trata, como dizem alguns analistas, do pretenso realismo de Obama contra o idealismo de digamos... John McCain.
A política de Obama em relação ao Médio Oriente, que tem no Irão a sua chave-mestra, é muito mais do que uma política "realista". É uma nova visão das relações entre os EUA e o mundo islâmico, expressa no seu já célebre discurso do Cairo.
O que Obama disse no Cairo é que as sociedades têm de mudar por dentro e não há forma de os EUA imporem aos outros a democracia. Mas o que disse também é que há valores que não são ocidentais ou muçulmanos, porque são o património de toda a humanidade. A questão não é se as mulheres muçulmanas usam ou não o véu. A questão é elas serem privadas dos seus mais elementares direitos, como o da educação ou o da palavra. Foi o que ele disse. É o que está demonstrado nas ruas de Teerão.
É à luz desses direitos elementares e universais, que estão para além do respeito entre culturas e entre países, que Obama se tem pronunciado sobre os acontecimentos de Teerão. É à luz desses valores que a morte de Neda tem um simbolismo universal. É à luz desses valores e da forma como o Presidente americano os exprimiu quando falou no Cairo ao mundo islâmico que o regime iraniano deixou de poder contar com um dos seus mais fortes argumentos internos: a ingerência externa e a diabolização da América.
"Grandes discursos não são apenas palavras. Podem ter consequências poderosas", escreveu recentemente Joschka Fischer. "É o caso, obviamente, do discurso do Presidente Obama ao mundo islâmico no Cairo". O que disse não foi nem será indiferente ao que se está a passar no Irão.
Jornalista
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