19 junho, 2009

Greg Mortenson: uma escola de cada vez


19.06.2009, José Vitor Malheiros, no Público

A maneira como a CNN contava a história, numa reportagem publicada no ano passado, podia ler-se como uma versão do Principezinho. Em vez de um aviador havia um alpinista. Em vez de uma avaria do motor havia a exaustão do homem, que o tinha obrigado a uma escala imprevista e prolongada numa aldeia. Em vez do deserto, a história passava-se na região montanhosa mais inóspita e mais bela do mundo, no Paquistão, no sopé do pico K2, o segundo mais alto do planeta. Em vez de um menino havia uma menina. E em vez da pergunta "Desenhas-me uma ovelha?" havia a pergunta "Podes ajudar-me a construir uma escola?"
As coisas não terão sido exactamente assim, a acreditar na versão contada pelo próprio alpinista, o americano Greg Mortenson, no seu livro Three cups of tea, escrito em parceria com o jornalista Davis Oliver Relin e publicado em Janeiro de 2007 (Três Chávenas de Chá, publicado em Portugal em 2008 pela Casa das Letras). Mas foram parecidas. Só que não foi precisa a pergunta da menina para decidir Mortenson a investir todos os seus esforços para garantir a estas crianças do tecto do mundo o direito a uma educação básica.
O episódio aconteceu em 1993, quando Mortenson, então com 35 anos, enfermeiro de profissão e um experiente alpinista amador, já com meia dúzia de picos dos Himalaias no currículo, decidiu lançar-se àquele que muitos consideram o mais temível desafio em termos de escalada. A expedição não era uma bravata mas um gesto de homenagem. Uma homenagem à sua irmã Christa, que tinha morrido no ano anterior, no dia do seu 23.º aniversário, na sequência de um ataque epiléptico, depois de uma vida em constante luta contra uma doença profundamente incapacitante, sequela de uma grave meningite infantil. A escalada tinha como objectivo deixar no topo da montanha um colar de contas de âmbar que tinha pertencido à sua irmã e que levava enrolado num xaile de orações tibetano. Mortenson não tinha bem a certeza da razão do seu gesto, que imaginava que pudesse ser, vagamente, uma oferenda para a divindade que pudesse viver lá em cima, mas o que sabia era que o esforço que iria fazer para o colocar no topo do mundo não era nada comparado com os anos de sofrimento físico da sua irmã, cuja determinação e coragem para enfrentar os desafios do dia-a-dia e para manter um mínimo de autonomia constituíam para si um exemplo.
A escalada não correu bem. Mortenson partiu com um grupo, sem grande coesão e com objectivos diferentes, que se foi desagregando à medida que a expedição ia prosseguindo. Alguns chegaram ao topo, mas cinco acabariam por morrer. Passou mais de 70 dias na montanha e, a certa altura, depois de alguns dias particularmente penosos, passados a transportar equipamento para uma das bases, teve de participar no resgate de um dos seus companheiros, que se tinha separado do grupo e que ficou às portas da morte, exausto e gelado, e que teve de ser transportado em peso para lugar seguro. O resgate foi feito com êxito - o seu companheiro perderia os dedos dos pés -, mas custou-lhe três dias de esforços sobre-humanos que comprometeram definitivamente a missão. A seiscentos metros do cume, Mortenson teve de admitir que continuar a subir representaria a morte certa e começou a descida. Quase sem forças, gelado, num estado de apenas semiconsciência, a certa altura perdeu de vista o seu guia e seguiu um caminho errado. Por pura sorte, numa região onde um passo em falso pode representar a morte, Mortenson foi dar a uma aldeia que não aparecia em nenhum dos mapas que tinha estudado. Ao entrar na aldeia foi recebido por um grupo de crianças, que o levaram à casa do chefe, onde foi recebido de acordo com as regras de hospitalidade tribais do povo Balti, lhe foi servido chá e onde mergulhou num sono profundo de vários dias, apenas interrompido para comer. Era o primeiro estrangeiro a visitar a aldeia de Korphe.
Um dia, Mortenson pediu ao chefe da aldeia, Haji Ali, para lhe mostrar a escola. Ali pareceu um pouco constrangido mas levou-o ao sítio onde os 78 rapazes e as 4 raparigas da aldeia estavam a estudar. Não havia escola porque não tinham dinheiro para a construir e as crianças estudavam ao ar livre. E o professor não vinha todos os dias porque a aldeia não tinha dinheiro para lhe pagar o salário completo. Pagava-lhe metade e ele ia três dias por semana. O dia em que Mortenson visitou a "escola" era um dos dias sem professor. O que impressionou o americano foi ver, nessa escola sem professor, a seriedade com que as crianças, entregues a si mesmas, repetiam as lições, escrevendo com um pauzinho na terra ou usando lama como tinta para escrever em tabuinhas.
E aí, ainda com o colar de âmbar da sua irmã no bolso, Mortenson percebeu que a melhor homenagem que poderia fazer a Christa seria ajudar em seu nome estas crianças, que mostravam a mesma determinação que ela tinha mostrado na sua vida. E fez uma promessa a Haji Ali e às crianças: "Vou construir-vos uma escola!"
Foi o princípio de uma nova vida. De regresso aos Estados Unidos, Mortenson tentou angariar donativos para cumprir a sua promessa, mas constatou que não era fácil financiar um programa para instruir crianças xiitas. Das 580 pessoas a quem mandou cartas só uma mandou um cheque - o antigo pivot da NBC Tom Brokaw. O grande salto aconteceu quando Mortenson conheceu Jean Hoerni, um suíço radicado na Califórnia que foi um dos pioneiros da indústria electrónica. Hoerni deu dinheiro para a construção da escola de Korphe e de uma ponte sobre o rio, que substituiu a corda que permitia a travessia até então. Em 1996, os donativos de Hoerni (que morreu em 1997) permitiram criar a fundação que Mortenson ainda hoje dirige, o Central Asia Institute (CAI). Até hoje, o CAI já construiu mais de 90 escolas que formaram 34.000 crianças, das quais 24.000 raparigas, no Norte do Paquistão e no Afeganistão, em plena zona de influência dos taliban, e algumas também na Mongólia e Quirguízia, sempre em zonas rurais de muito difícil acesso, onde não há outras organizações internacionais.
O livro de Mortenson, que está há mais de dois anos na lista de best sellers do New York Times e que já vendeu mais de 3 milhões de exemplares, tem sido um dos principais meios de difusão do seu trabalho, mas os media de todo o mundo têm seguido a sua actividade, que também lhe tem merecido muitas homenagens.
Mortenson começou o seu trabalho na região muito antes do 11 de Setembro e continuou a trabalhar durante a intervenção americana no Afeganistão. E, durante todo esse tempo, sempre numa região de influência taliban, de cultura xiita e onde os americanos são vistos com grande desconfiança. A sua estratégia é sempre a de deixar que sejam as populações locais a tomar as decisões. As condições são que as escolas têm de servir para ensinar - a ler, a escrever, a fazer contas, não para fazer doutrinação religiosa - e que as raparigas têm de ser incluídas. De facto, a educação das raparigas constitui o principal objectivo do CAI, pois esse é o maior contributo para o progresso das aldeias e para a paz da região. As mulheres estão mais dispostas a fazer sacrifícios para a educação dos filhos e são elas as mais empenhadas na paz e em questões como a saúde ou a alimentação. Há vários ex-taliban que hoje colaboram com o CAI e em todos os casos foram as suas mães que os convenceram a abandonar o movimento extremista.
Mortenson, que vai com frequência ao Paquistão e Afeganistão mas vive no Montana (EUA) com a sua mulher e dois filhos, já passou os seus maus bocados. Já foi raptado por taliban, foi apanhado entre guerras de bandos rivais, foi objecto de fatwas, ameaçado por americanos que o acusam de pactuar com o inimigo - mas há algo de que tem a certeza: construir escolas faz mais pela paz do que lançar bombas, pois é entre os pobres e os iletrados que os taliban arregimentam os seguidores. Como lembrava Nicholas Kristof num artigo de opinião no New York Times, um míssil Tomahawk custa meio milhão de dólares. Se derem esse dinheiro a Mortenson, ele constrói 20 escolas "e, a longo prazo, essas escolas vão provavelmente ser mais úteis para destruir os taliban".
Mortenson sabe ainda outra coisa: sabe que a sua irmã ficaria mais feliz com as escolas do que se ele tivesse deixado o seu colar no K2.


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