19 abril, 2009

Cavaco visitou o país de Sócrates e não gostou do que viu



19.04.2009, Paulo Ferreira, no Público

O "bota-abaixismo", como costuma dizer o primeiro-ministro,
desta vez veio de Belém. Que a "cooperação estratégica" descanse em paz

Desconversar educadamente, é como se pode classificar a reacção do ministro das Finanças ao discurso de Cavaco Silva de sexta-feira. Teixeira dos Santos cumpriu o ritual: disse que não entendia as palavras do Presidente da República como um recado para o Governo. Para respeitar a cartilha por inteiro (a avaliar pelos excertos destacados pelos jornalistas que o ouviram ao vivo), só faltou acrescentar que "o Governo revê-se nas palavras do senhor Presidente da República e partilha as mesmas preocupações". É assim que Augusto Santos Silva costuma dizer, não é?
Mas, desta vez, a habitual diplomacia retórica é manifestamente insuficiente. Poucos diagnósticos presidenciais foram, até hoje, tão duros e directos como o que Cavaco Silva fez no quarto Congresso da Associação Cristã de Empresários e Gestores.
A mensagem para o Governo é clara e não há como fugir-lhe, por mais que o Governo queira fingir convenientemente que não entende.
Senão, leia-se esta frase: "seria um erro muito grave, verdadeiramente intolerável, que, na ânsia de obter estatísticas económicas mais favoráveis e ocultar a realidade, se optasse por estratégias de combate à crise que ajudassem a perpetuar os desequilíbrios sociais já existentes". Ou estas: "esta não é altura para intervencionismos populistas ou voluntarismos sem sentido. Os recursos do país são escassos e é muito o que há ainda por fazer. É preciso garantir o máximo de transparência na utilização dos dinheiros públicos".
Os empresários e gestores portugueses foram o outro alvo de Cavaco, que disse sem rodeios aquilo que muitos precisam de ouvir: desde a ganância e a crescente disparidade de rendimentos entre os altos gestores e os outros trabalhadores até ao encosto que muitos deles esperam do Estado: "seria um erro pensar que a obrigação de acautelar os princípios de justiça, de equidade e de coesão recai apenas sobre os decisores políticos. É nas empresas e no diálogo entre elas e dentro delas que começa esta responsabilidade".

Há outro tema onde Cavaco foi mais longe, reservando as palavras mais duras: as relações entre o Governo e alguns grupos empresariais. Por um lado, o Presidente alerta que "muitos dos agentes que beneficiaram do statu quo - e que tiveram um papel activo nesta crise financeira - continuam a ser capazes de condicionar as políticas públicas, quer pela sua dimensão económica quer pela sua proximidade ao poder político". Ou seja, o Governo está, até certo ponto, capturado por esses agentes na definição e execução de políticas.
Mas esta relação perigosa é uma estrada com dois sentidos. Se há grupos empresariais que têm governantes "no bolso", temos, no reverso, os submissos porque esperam que seja o Governo a resolver os seus problemas.
Disse Cavaco mais à frente: "o pior que nos poderia acontecer era a crise acentuar a tendência, bem nociva para o país, de algumas empresas procurarem a protecção ou o favor do Estado para a realização dos seus negócios. Empresários e gestores submissos em relação ao poder político não são, geralmente, empresários e gestores com fibra competitiva e com espírito inovador. Preferem acantonar--se em áreas de negócio protegidas da concorrência, com resultado garantido".
Governação para as estatísticas, tentativa de mascarar a realidade, falta de transparência na aplicação de dinheiros públicos de combate à crise onde, aliás, há sinais de desperdício, tentação do populismo e do voluntarismo e, como corolário, a promiscuidade entre alguns empresários e gestores e o Governo. É impossível não ver nisto uma análise lúcida do país, que se tem agravado sob a capa do "combate à crise".
O diagnóstico não é novo e costuma ser classificado pelo primeiro-ministro de "bota-abaixismo" ou "pessimismo". Agora, José Sócrates ouviu-o da boca do Presidente da República, sem margem para segundas interpretações. Se ainda vivia, a "cooperação estratégica" foi agora morta pela crise e pelos duvidosos objectivos desta governação.

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