17 novembro, 2008

Os três poderes


Os três poderes


António Barreto no Público de 16/11/2008

Nas próximas eleições, todos os partidos, com excepção do PS, vão sugerir a revogação das actuais leis da educação.

Duas teimosias. Dois fanatismos. Nos actuais termos, a guerra das escolas não tem saída. Mesmo que esta ministra consiga, pela lei da força, uma qualquer vantagem, terá, a prazo, uma grande derrota. Os professores, de futuro, não farão o que ela hoje pretende. Aliás, muitos já o não fazem. O próximo ministro da educação, até do mesmo partido, terá necessidade de alterar muita coisa e procurar um novo pacto. Se for de outro partido, a primeira coisa que fará será alterar este quadro legal e as práticas que são hoje impostas. Nas próximas eleições, poderá ver-se na campanha e nos respectivos programas: todos, com excepção do PS, vão sugerir a revogação das actuais leis e os mais imaginativos acabarão por propor um novo sistema de avaliação. O próprio PS fará uns "ajustamentos"...
Não se trata apenas de teimosia. Muito menos da força da razão. Há muito mais do que isso. A começar pela ideia de imagem, um dos maiores venenos da política contemporânea. Não se pode perder a face. Não se desiste. Não se devem reconhecer erros maiores. Não é bem visto recuar. A insistência, mesmo no erro, é sinal de carácter. Estes são alguns dos sentimentos que passam pela cabeça dos governantes e dos dirigentes dos sindicatos. Mas há mais. O governo recorda com especial carinho o episódio de Souselas. Já ninguém se lembra, mas Sócrates não esquece. Foi essa história menor da política portuguesa que criou Sócrates e lhe ofereceu um trampolim para o lugar que hoje ocupa. Nunca ceder, ir até ao fim, são imperativos.
Mas a superfície não explica tudo. Estas batalhas não se limitam a estilos e imagens. Está em curso uma luta entre três poderes. Luta verdadeira, de cujo resultado vai depender o futuro da educação e da escola. Quais são esses poderes? Em primeiro lugar, o do ministério (ou do Governo), em tentativa de reforço e consolidação. Segundo, o dos professores, em queda. Terceiro, o da escola, largamente fictício. O Governo quer centralizar ainda mais o sistema educativo, deseja reafirmar o seu poder sobre a escola e sobre os professores e pretende uniformizar regras e critérios. Procura manter as autarquias sob a sua alçada e transformar os professores em verdadeiro regimento fabril ou militar. Entende que, obedientes, as escolas e os professores darão melhor contributo para as suas estatísticas. De passagem, tem outros objectivos, eventualmente mais nobres: poupar dinheiro e obrigar os professores a trabalhar mais.
Os professores, tanto "os movimentos" como os sindicatos, não querem ser esbulhados da enorme parcela de poder que as reformas lhes deram durante as últimas décadas. Como não querem ser obrigados a seguir as ordens regimentais e as enxurradas de directivas que o ministério lhes envia regularmente. Não querem ver as suas carreiras transformadas em função burocrática e automática. Não desejam ser avaliados. Não querem perder os privilégios que os sucessivos governos e as modas pedagógicas lhes conferiram. Não aceitam ser, além de parte interessada, juízes, fiscais e polícias em nome do ministério que abominam. E não querem ser cúmplices desta nova ordem burocrática que se anuncia.
Quanto às escolas, coitadas! Não têm porta-voz, praticamente não existem como instituição. Não cultivam espírito de corpo. Não têm meios. Não têm relações verdadeiras e genuínas com os pais, nem com as comunidades. Não são entidades autónomas, com identidade e carácter. São fortalezas dos professores ou repartições do ministério. Não têm nada a perder com esta guerra, pela simples razão de que nada têm.

A ministra tem algumas razões. Mais trabalho, por parte de alguns que folgam. Um qualquer princípio de avaliação. Poupar recursos e dinheiro. E impedir que todos os professores tenham sempre as classificações de muito bom e excelente, pragas conhecidas em toda a função pública. Mas o Inferno está no pormenor. Como sempre. Os jornais já publicaram mil pormenores sobre o sistema de avaliação, dos formulários às regras e procedimentos. O escárnio é constante. A ministra queixa-se de que o seu sábio sistema foi ridicularizado! É verdade. Mas não merece menos do que isso. Além de absurdo e inútil, este exercício parece uma punição, a fazer lembrar os castigos infligidos, por praxe sádica ou despotismo, nas forças armadas de muitos países. Não é só este sistema que está errado: é o princípio mesmo de uma avaliação centralizada, de âmbito nacional e uniforme.
A avaliação ministerial, burocrática, formal e pseudocientífica é um enorme erro. A grande tradição centralista, integrada e unificada da educação pública em Portugal é responsável pela mediocridade de resultados e pelo desperdício de enormes recursos financeiros vertidos, desde há trinta anos, por cima do sistema, sem resultados proporcionais. É essa tradição que é responsável pela ausência de espírito comunitário nas nossas escolas. Pelo desdém que as autarquias dedicam às escolas. Pela apatia e impotência dos pais. Pelo facto de tantos professores desistirem do orgulho nas suas carreiras e do brio no exercício da sua profissão. É provável que muitos não queiram trabalhar quanto devem ou que tenham outros interesses. Como em todas as profissões. Mas o seu sentimento de dignidade ferida parece genuíno. E é compreensível.

São quase misteriosas as razões pelas quais não se permite que sejam as escolas, os seus directores e os seus conselhos de direcção, ajudados pela comunidade e pelos pais, a avaliar a escola no seu conjunto. E não se deixam os responsáveis das escolas observar e avaliar o desempenho profissional dos docentes. A República, o Estado Novo, a democracia, o socialismo e o comunismo coligam-se facilmente para manter a escola sob o punho do ministério, cuja proverbial incompetência é uma das raras constantes na história do século XX. Entre o ministério e o sindicato, parece haver terra queimada, campo de batalha. Não terão percebido os professores, desta vez, que a autoridade do ministério é o pior que lhes pode acontecer? Apetece dizer que chegou a hora de sair deste impasse, de quebrar a tenaz dos dois fanatismos. Uma visão optimista levar-nos-ia a pensar que, finalmente, os professores perceberam que a autoridade da escola pode ser a solução. Dá vontade de acreditar que este é o momento de deixar de escolher entre a guerra e a peste. Mas a esperança numa solução sensata e num esforço de imaginação criativa, em vésperas de eleições, é uma doença grave. Livremo-nos, ao menos, dessa. Sociólogo

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