22 novembro, 2008

E depois da maré vazar?


E depois da maré vazar?


22.11.2008, São José Almeida, no Público

Todas as boas intenções de Sócrates para o ensino público, se alguma vez existiram, esboroaram-se

A grande dúvida é perceber qual a real dimensão dos danos que provocará a batalha campal que se vive na sector da educação. O problema político de fundo já nem é o de saber quais os danos que esta guerra terá sobre o Governo - esses são públicos, notórios e difíceis de digerir até pelo PS -, é sim o de saber as consequências que ela irá ter sobre a sociedade portuguesa, ou melhor, sobre o ensino público em Portugal.
Desde que entrou no Ministério da Educação, Maria de Lurdes Rodrigues procurou protagonizar o que foi assumido pelo primeiro-ministro, José Sócrates, como a reforma do ensino público, com o objectivo de não só melhorar, como assegurar o futuro desse mesmo ensino público. Sem tencionar questionar aqui a validade e a verdade dos propósitos dessa promessa, o que é facto é que a atitude intolerante, impositiva e autoritária que a ministra adoptou desde a primeira hora deitou a perder qualquer bondade e mérito que existissem nas intenções do Governo socialista em prol do ensino público.
Durante mais de três anos Maria de Lurdes Rodrigues, com absoluto apoio de José Sócrates, foi esticando a corda, forçando a pressão sobre os professores. Sempre com uma táctica de afronta directa. Sempre insistindo na demagogia de que o mau funcionamento da escola era responsabilidade dos professores. Sempre assumindo um tom de insulto de quem considera que os professores são pessoas mal formadas, que estão de má-fé nas escolas, que escolheram ou aceitaram leccionar apenas para fazerem uma carreira fácil (?), relativamente bem remunerada (?) e que permite estar de papo para o ar (?), gozando a vida.
Quando é sabido que o Ministério da Educação é uma mastodôntica estrutura de poder que envia directivas em cascata para as escolas. Quando é sabido que nada se passa numa escola sem que haja autorização, ordens, licença da 5 de Outubro ou da 24 de Julho. Quando é sabido que o Ministério da Educação é uma espécie de Titanic à beira de se afundar, ingovernável e cheio de pequenos poderes autoritários e de tiranetes patéticos, como já afirmei aqui (PÚBLICO 17/06/2006). Maria de Lurdes Rodrigues achou que podia atirar-se aos professores, como se eles fossem a origem de tudo o que corre mal no mundo da educação, como se fossem bandidos, que é preciso admoestar.
Ou seja, Maria de Lurdes Rodrigues elegeu os professores como bodes expiatórios de um sistema de ensino, apontando-os como uma cambada de preguiçosos e calões, aproveitadores dos dinheiros públicos e que se estão nas tintas para os alunos. E assumiu-se a si como a salvadora do sistema, que ia moralizar a classe docente, impor regras, acabar com a balda da escola pública. Ora, ao fim de três anos, a esquizóide cruzada de Maria de Lurdes Rodrigues resultou naquilo que era previsível. Os professores fartaram-se de ser insultados, fartaram-se de ser tratados como párias. E Maria de Lurdes Rodrigues bateu contra a parede.
Todas as boas intenções de Sócrates para o ensino público, se alguma vez existiram, esboroaram-se no embate da atitude suicidária de Maria de Lurdes Rodrigues contra o muro de mais de cem mil professores em luta. Nenhuma reforma se fará ou será lançada esta legislatura. E a verdade nua e crua é que, mesmo que José Sócrates insista em manter Maria de Lurdes Rodrigues no Ministério da Educação, ela já não é de facto ministra. E não é de facto ministra porque as escolas ignoram-na, os professores não aceitam a sua autoridade e não a respeitam, o país assiste incrédulo ao dilapidar da credibilidade da política por quem a devia dignificar.
É pena que Maria de Lurdes Rodrigues avance na táctica de pescar à linha escolas e interlocutores neste ou naquele sindicato, nesta ou naquela associação de pais, procurando até comprar o silêncio dos alunos com uma alteração menor no Estatuto do Aluno. É pena que Maria de Lurdes Rodrigues dê o dito por não dito e vá abastardando o seu modelo de avaliação, que garantia perfeito, com pequenas alterações tácticas, que não resolvem nada do problema de fundo, só mostram a sua incapacidade para o lugar que ocupa. É pena que o Governo não perceba que não se governa satisfazendo as reivindicações da rua, mas também não se pode governar ignorando o pulsar da rua. É pena que o PS tenha esquecido que é Governo. Como dizia António José Seguro, quando está "em causa a qualidade da escola pública", é certo que "não há lugar para posições inflexíveis".
Quanto à reforma de José Socrátes e do PS para a educação: qual era mesmo o objectivo? Melhorar a escola pública? Era?

O campo de batalha em que se transformou o ensino público trouxe à ribalta um outro protagonista: Mário Nogueira, que lidera a Fenprof e a plataforma de sindicatos de professores e que tem tentado puxar por toda a sua capacidade para se manter a surfar na crista da onda que foi formada pela revolta e indignação de professores na rua.
É importante que ninguém esqueça que não há sindicalismo em parte nenhuma do mundo que consiga o que a atitude sistemática de afronta à dignidade dos professores seguida pela ministra da Educação conseguiu em Portugal: colocar a classe docente na rua com manifestações sucessivas e um calendário de acções reivindicativas que passa pela greve nacional e pelo boicote às notas do primeiro período.
De facto, os sindicatos assinaram um acordo com a ministra e aceitaram um tipo de avaliação que foi lançada e posta a funcionar. Só que os sindicatos não são as escolas. Os sindicatos representam professores, não são os professores. E é evidente em toda esta guerra que os sindicatos foram ultrapassados pela rua. E só resta aos dirigentes sindicais engolir em seco, rasgar o acordo que assinaram e tentar navegar na crista da onda da contestação da rua, sob pena de serem afogados pela voragem da rebentação e acabarem a não representar ninguém. E, por mais que a posição de Mário Nogueira e dos outros dirigentes sindicalistas seja de pura sobrevivência política, é bom que sobrevivam e que o poder negocial não caia de todo na rua. A bem do ensino público e do que restar da escola, quando a maré vazar. Jornalista (sao.jose.almeida@publico.pt)

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