29.05.2009, José Miguel Júdice, no Público
O wonder kid do cavaquismo, que exprimiu de modo sublime a epopeia from rags to riches, acabou politicamente
A renúncia de Dias Loureiro ao lugar de conselheiro de Estado foi um acto muito mal coreografado, que demonstra como pode ficar "enferrujado" um político de excepção após alguns anos sem praticar o ofício. De facto, se me tivessem perguntado qual era o pior momento para esta renúncia, não teria dúvida em dizer que seria após a (previsível, e aliás prevista por Loureiro) presença de Oliveira Costa na Assembleia da República para abrir o saco, e em plena campanha eleitoral (prejudicando o PSD, ainda que a este partido nenhuma culpa possa ser atribuída).
Em minha opinião, o melhor momento deveria ter sido após Cavaco Silva lhe ter afirmado a confiança. Se nesse momento renunciasse, sempre poderia afirmar que o fazia, apesar da (inequívoca) expressão presidencial, como um elegante gesto para lhe evitar hipotéticos incómodos. Chego a admitir que havia da parte do Presidente uma subtil sugestão, talvez não percebida. Também não estaria mal se tivesse renunciado logo após as primeiras imputações, com a clássica afirmação de que o faria para se poder defender melhor. Ou que o fizesse quando, sem sensatez (incompreensível num homem que geria a comunicação com enorme maestria), foi explicar-se e defender-se à RTP: se renunciasse em cima do programa marcaria pontos, pelo menos no plano mediático, e poderia beneficiar da lógica do "coitadinho", tão cara à generosa e lacrimejante alma portuguesa.
Nada do que atrás escrevo é original. Como dizer que ele se presume inocente e até que pode não ter cometido nenhum crime. Só que não há ninguém - mesmo os que afirmam ser seus amigos - que não afirme, pelo menos, que ele cometeu erros de julgamento muito graves. Agora, como se diz no Brasil, Inês é morta. Dias Loureiro, o wonder kid do cavaquismo, alguém que exprimiu de modo sublime a epopeia from rags to riches em que se realçaram alguns como Duarte Lima ou o próprio Oliveira Costa, acabou politicamente. E isso é que talvez mereça alguma reflexão adicional.
Tenho estigmatizado a forma pelintra e miserabilista como são remunerados os políticos; tenho realçado que nada justifica que se censure um quadro político que, tendo chegado aos pináculos da fama, faça a transição para a vida empresarial; não me canso de criticar a presunção pública, mais ou menos iniludível, de falta de seriedade e de ética quando ex-políticos ganham dinheiro (ainda que em negócios especulativos ou que são viabilizados apenas devido a contactos que se mantiveram após a saída do poder). Nunca estive nesse mundo, nunca fiz esses negócios, nunca ganhei dinheiro que não fosse com trabalho árduo.
Penso, por tudo isso ter legitimidade para olhar para este fenómeno de um ponto de vista sociológico, dir-se-á. Para concluir que, com a desgraça de Dias Loureiro, acabou simbolicamente uma época, o tempo do cavaquismo. Então, à sombra do rigor ético de Cavaco Silva, assistiu-se a um acumular súbito de riqueza, a um conjunto de oportunidades para quadros dirigentes da máquina do Estado e a um conúbio entre poder político e poder económico, como não tenho memória de presenciar nem provavelmente voltarei a conhecer.
Estas pessoas, de um modo geral, chegaram ao exercício da política sem grandes recursos, que não fosse o sentido de oportunidade, a inteligência prática, a determinação de parvenus, a dedicação de ambiciosos, a resistência à fadiga, o facto de pouco ou nada terem a perder. Em parte à sombra de Cavaco, mas também muito por mérito próprio, tiveram um sucesso para além de tudo o que poderiam imaginar. E tiveram sorte: a cornucópia de fundos comunitários, os novos grupos económicos (à procura de contactos, de acessos, de respeitabilidade), as privatizações, a acumulação de riqueza na bolsa, tudo isto - numa época de media menos enervados com falta de vendas e, por isso, que os não sujeitavam a escrutínio - abriu portas e futuros insuspeitados.
Na fase formativa da sua vida política, de um modo geral jovens, vindos de cidades de província, provaram o fruto encantatório e embriagante do poder e de tudo o que a ele se liga. Ganharam eleições, destruíram oposições, comandaram legiões, conspiraram, foram recebidos nos salões da alta burguesia e nos "montes" da velha aristocracia, acreditaram que Portugal mudara, que era um país novo e diferente e que eles estavam destinados - ungidos pela deusa da Oportunidade ou bafejados pela deusa da Fortuna - a ser a nova elite que se perpetuaria no poder e nos poderes.
Para sua protecção faltou-lhes algum cinismo, algum pessimismo histórico, alguma formação cultural. Acreditaram que era só mérito o que - sendo-o, sem dúvida - foi sobretudo acaso, sorte, conjugação de factores favoráveis. Ficaram arrogantes, auto-suficientes, vingativos. Lembro-me de um que, perante algumas notícias que lhe desagradaram no Semanário, a cujo Conselho de Administração eu presidia, me espetou o dedo ameaçador: ainda hoje sorrio, com a ternura que o tempo nos dá quando o medo dos poderosos não esteja imbuído nos nossos genes.
O grande erro - o principal erro - de Dias Loureiro foi essa arrogância de predestinado, essa convicção de quem se habituou a ser um "Senhor do Universo". Como há dias o seu amigo Luís Delgado explicou, referindo-se à sua primeira audição na Assembleia da República, chegou lá sem uma nota, sem um papel, desleixadamente, sem preparação, pois no fundo da sua alma sabia que iria sair vencedor daquela maçada, devido à sua experiência, à sua inteligência, ao seu poder e até ao seu spleen.
Não foi assim. Já não podia ser assim. Mesmo os eternos vencedores acabam por perder. Ficam melhores depois disso, mas essa é outra história. Mas escolher Loureiro para o Conselho de Estado foi já um erro de Cavaco. A melhor forma de o corrigir, fica a sugestão, é nomear Fernando Nogueira.
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