21.05.2009, Helena Matos no Público
De cada vez pensamos que já vimos tudo o que tínhamos para ver. Umas semanas depois descobre-se algo de muito pior
...E assim sucessivamente nos andamos a gravar uns aos outros.
- Se quiseres eu mostro-te as provas.
- Ai tem? E quer que lhe faça também um desenho?
Estas são algumas das frases trocadas entre a professora da escola de Espinho e uma das alunas que se ouve na gravação. Nada disto tem o mínimo de razoabilidade ou é sequer moralmente aceitável. Mas, se virmos bem, é assim que o país está, entre o demente e o acanalhado, com uns a dizerem "Se quiseres eu mostro-te as provas" e os visados a responderem "Ai tem? E quer que lhe faça também um desenho?"
Já tínhamos tido as imagens captadas por um telemóvel que mostravam uma professora a ser agredida dentro da sala de aula. Já tivemos também as gravações de gangs a dispararem e agredirem quem lhes apeteceu. E, claro, temos o folhetim das gravações do senhor Smith. De cada vez que uma destas gravações é revelada supõe-se que já se viu tudo o que se tinha para ver. Umas semanas depois descobre-se que temos para visionar algo de muito pior e assim vamos embalados em play nesta estranha forma de vida em que uns gravam, outros são gravados e o povo visiona.
Honestamente temos de admitir que as gravações clandestinas são o que de mais relevante a nossa memória guarda dos últimos anos em Portugal. Já não nos lembramos dos factos em si mesmos, mas não esquecemos o momento em que aquelas imagens, captadas às escondidas, passaram pela primeira vez diante dos nossos olhos. Tal como os voyeurs que só obtêm prazer observando o sexo dos outros, também os portugueses se satisfazem vendo imagens captadas clandestinamente e que na verdade não revelam nada que já não saibamos. Que existem professores que não têm condições para o ser é um dado incontornável. Que a indisciplina se instalou nas escolas é um facto. Que os gangs impõem as suas regras nuns bairros por ironia chamados sociais é óbvio. E quanto aos mecanismos para obter licenciamentos explicados ao vivo pelo senhor Smith também sabemos que pouco têm de original. Muito mais sofisticado e danoso para o país do que o Freeport foi o processo da Cova da Beira e dúvidas muito mais sérias se colocam nesse caso em relação ao procedimento de José Sócrates. Mas como não existem gravações clandestinas na Cova da Beira mas sim factos, o assunto não suscita interesse ao visionador a que está reduzido cada português. Digamos que não se perde grande coisa com o facto de não existirem gravações secretas do caso Cova da Beira. Ou seja, apenas se perde espectáculo, pois tal como os voyeurs não têm actividade sexual propriamente dita, satisfazendo-se em espreitar os outros, também os cidadãos-visionadores se esgotam na reacção de indignação aquando do visionamento. Em seguida, já satisfeitos, caem numa abulia da qual só serão brevemente despertos por uma gravação ainda mais alarve.
O que é grave nestas gravações não é portanto o que elas mostram acerca dos desgraçados que nelas surgem, mas sim o que elas mostram sobre nós. Sobre a nossa demissão em relação ao país. Por exemplo, o que é que já fizemos para flexibilizar a escolha das escolas pelas famílias? Recordo que as escolas têm tido de manter em funções professores não apenas perturbados como a senhora da gravação da escola de Espinho, mas também gente acusada de crimes graves, como a pedofilia, ou até condenada por eles. Se, no ensino público, os pais pudessem mudar os seus filhos de escola ou de turma, os professores problemáticos não desapareciam mas certamente que não se arrastariam anos e anos pelas escolas até que resolvessem concorrer para outro lado. O estranhíssimo universo revelado pelas gravações efectuadas nas salas de aula é o resultado inevitável daquilo que não temos tido coragem nem paciência para mudar na educação.
Em 2009, o país vive sob a perversão do voyeur, aquele que trocou o fazer pelo ver: o povo tornou--se não na razão de ser do regime mas sim no seu visionador. Não por acaso vemos os movimentos radicais interrogando-se todos os dias sobre o momento em que também em Portugal se verão essas imagens de pneus a arder, gente de cara tapada apedrejando sedes de empresas e gestores sequestrados. Isso não resolve nada e contribui para uma mais acelerada deslocalização das empresas. Obviamente quem anseia por esses acontecimentos sabe-o muitíssimo bem. Mas sabe também que essas imagens refrescariam o imaginário do cidadão--visionador. Infelizmente não é apenas a insolente gaiata da gravação que anda para aí a perguntar : "E quer que lhe faça também um desenho, s'tora?" Tanto quanto sei, estão dez milhões à espera para ver. (helenafmatos@hotmail.com)
a A polémica. "Para travar a polémica e procurar um consenso, o deputado Pedro Nuno Santos, secretário-geral da Juventude Socialista (JS), explica que a maioria socialista quer envolver as unidades de saúde nessa distribuição de contraceptivos" - elucidava a TSF num daqueles dias em que a voz de quem lê os noticiários tremelica na antecipação de mais uma questão fracturante que divida o país em progressistas inteligentes e reaccionários estúpidos. Cabe perguntar a que polémica se refere o secretário-geral da Juventude Socialista. Na verdade não existe polémica alguma, nem pode existir. Há décadas que as unidades de saúde distribuem gratuitamente em Portugal contraceptivos aos jovens. Convém que se recorde que nas cidades de Aveiro, Beja, Braga, Bragança, Castelo Branco, Coimbra, Figueira da Foz, Évora, Faro, Leiria, Portalegre, Porto, Santarém, Setúbal, Viana do Castelo, Viseu, Vila Real, Caldas da Rainha e Pombal existem gabinetes específicos para esta questão. Regra geral são designados como Gabinetes de Apoio à Saúde e Sexualidade Juvenil e, segundo informação oficial disponível a qualquer um de nós, deputado ou não, 29 enfermeiros, 27 médicos, 26 psicólogos, cinco nutricionistas, dois assistentes sociais, um dietista e um psiquiatra atendem nos mais variados horários os jovens que aí os procuram. Se destes gabinetes citadinos passarmos para as unidades de saúde que cobrem todo o país, perceberemos que já há muitos anos foram criadas consultas de planeamento familiar às quais os jovens podem ter acesso independentemente do centro de saúde em causa estar ou não na sua área de residência (infelizmente, o mesmo princípio não se adapta aos adultos!) Esta possibilidade é muitíssimo importante sobretudo nos meios mais pequenos onde é mais difícil assegurar a privacidade dos utentes. Está estabelecido até que não é necessário fazer marcação prévia para ir a uma dessas consultas. E também em Portugal, devidamente apoiados pelo Ministério da Saúde, existem escolas onde funcionam gabinetes de promoção da saúde - cuja experiência e número deveriam ser muito mais alargados -, onde os alunos não só recebem contraceptivos como informação dada por técnicos qualificados sobre planeamento familiar, doenças sexualmente transmissíveis, alimentação, alcoolismo, etc.
Donde não conseguir perceber o que pretende o deputado Pedro Nuno Santos, secretário-geral da Juventude Socialista, quando afirma que a maioria socialista quer envolver as unidades de saúde nessa distribuição de contraceptivos. Isso e muito mais e melhor já é feito há muito tempo, e o resto é conversa. Ou procura dela.
a A ética republicana. A ética republicana é como o Espírito Santo: não se consegue explicar exactamente o que é, nunca se avista, mas acredita-se que opera milagres. Lembrei-me muito da ética republicana ao ver as imagens da demissão de Michael Martin, o speaker da Câmara dos Comuns. Tal como nos anos 70 era difícil explicar, em Portugal, as razões da demissão de Nixon, pois usar as polícias para espiar as campanhas dos partidos da oposição era então um direito adquirido do Governo, também hoje surge como bizarro que este homem se tenha demitido não porque ele mas sim alguns deputados tenham utilizado dinheiros públicos, ainda por cima em quantias irrisórias, em benefício próprio ou mais propriamente em benefício dos seus jardins e casas. Isto é o que acontece nos países onde a ética é simplesmente ética e não uma basófia do regime.
A tralha. A propósito ainda do pedido de demissão de Michael Martin, é interessante ver como o Pparlamento inglês apresenta uma pobreza tecnológica e até uma falta de conforto constrangedores quando comparados, por exemplo, com o Parlamento português. Nenhum daqueles parlamentares britânicos exibe computadores durante as sessões, até porque, à excepção dos joelhos, não teria onde colocá-lo. Mas questionam e discutem como compete a quem tem História e presta contas ao povo. Por cá exibem computadores, sempre ligados para dar um ar de ocupação, como os funcionários das repartições.
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