18 janeiro, 2010

O Acordo Ortográfico, o "excludente" e o ornitorrinco


Francisco Miguel Valada, Público

Nem a Einstein foi dado o impróprio privilégio de ver teorias não provadas serem directamente vertidas em texto legislativo.

São diversos os argumentos a favor do Acordo Ortográfico de 1990 (AO 90), mas todos partilham uma característica comum: são rebatíveis, quer no plano retórico, quando de retórica se alimentam, quer no plano factual, quando de factos alheios à realidade se servem. No plano técnico, continuamos todos à espera, uns impávidos, alguns serenos e outros nem uma coisa nem outra, que se rebata o irrebatível e se proponha o princípio revolucionário, com bases de sustentação, aniquilador de toda a doutrina em matéria ortográfica e de todos os pareceres fundamentados, escalpelizadores deste AO 90. Escalpelizadores e reprovadores, sublinhe-se. Sentados, continuaremos todos à espera.

Nem a Einstein foi dado o impróprio privilégio de ver teorias não provadas serem gratuitamente abraçadas e directamente vertidas em texto legislativo. Já agora, nem ao LNEC. Einstein, para provar que Newton estava errado, teve de aguardar por um eclipse solar. O LNEC, para ver conclusões suas transformadas em lei (refiro-me ao relatório sobre o novo aeroporto de Lisboa), teve de levar a cabo estudos. Quanto aos autores do AO 90, não precisam estes da teoria sancionada nem de estudos, servindo-se do eclipse científico. Felizmente, para todos nós, a Física vale-se exclusivamente de factos comprováveis e a quem avalia aeroportos e pontes não basta tecer uma avaliação subjectiva, devendo apresentar argumentação tecnicamente válida. A Linguística também tem factos comprováveis e comprovados para apresentar, mas já todos percebemos que há ciências mais iguais do que outras.

Um argumento factual, que eu julgara definitivamente afastado da argumentação pró-AO 90, porque medularmente falso, adrede ligeiro e notoriamente avulso, é o da ortografia "excludente". Já alhures tive oportunidade de rebater este argumento, perante o Sr. Embaixador Lauro Moreira. Devo repetir-me, aqui e agora, perante a incrível frase de José Mário Costa "Há toda a diferença entre uma língua, a nossa, com duas ortografias oficiais (repito: ortografias oficiais), antagónicas e excludentes entre si, e o inglês" (PÚBLICO, 12/01/2010).

O princípio "excludente" carece de explicação e passo a explicá-lo. "Excludente", na argumentação pró-AO 90, significa que uma criança brasileira reprovará numa escola portuguesa se utilizar a norma ortográfica do Português do Brasil e que uma criança portuguesa reprovará numa escola brasileira se utilizar a norma ortográfica do Português europeu. Pretendem os defensores do AO 90 que este quadro se alterará com a aplicação do AO 90. Nada de mais falso.

Se uma criança portuguesa escrevesse numa redacção a improvável frase: "Após o doutoramento do meu pai, comecei a sentir-me afectado", não creio que, numa escola brasileira, se concentrassem tanto no c de "afectado", mas antes se preocupassem com o "doutoramento" que deveria ser "doutorado", com o "do meu pai" que se imporia ser "de meu pai" e com o "a sentir-me" no lugar de "me sentindo", ou seja: "Após o doutorado de meu pai, comecei me sentindo afetado". Poderíamos então, à ortografia "excludente", acrescentar a morfossintaxe e o léxico "excludentes". Mas não nos centremos na subjacente ideia de "unificação da língua portuguesa", pois de ortografia aqui se trata.

Vamos aos factos. Segundo José Mário Costa, a ortografia "excludente" não se aplica ao Inglês. Limito-me, como matéria de séria reflexão, a deixar duas notas sobre a redacção em Inglês, a nível académico: uma da Universidade de Oxford (Reino Unido) e outra da Universidade de Stanford (EUA), para que as coisas surjam como são e não como se pensa que poderiam ser.

A primeira distingue um "não" em maiúsculas ("NOT") relativamente ao putativo uso da grafia consuetudinária do Inglês dos EUA ("Use British English rather than American English, e.g.: towards; amid; while; NOT toward; amidst; whilst") (1) e a segunda, em caso de dúvida, aconselha um dicionário americano e não um britânico ("Please use American spelling. If unsure, please consult Webster"s Tenth New Collegiate Dictionary and use the first entry of spelling") (2). Posso voltar a este argumento, mas penso que ficámos esclarecidos.

Acresce ainda não poder esta matéria ser "arrumada na prateleira da história" (José Mário Costa, PÚBLICO, 12/01/2010), considerando a relevância dos argumentos por mim e por outros apresentados. Arrumam-se argumentos, após dissecados e determinada a sua improcedência. Quando não, a sua relevância mantém-se. Pelo contrário, faltam aos argumentos do AO 90 estudos que os sustentem, tornando-os numa espécie de ornitorrinco, um enigma na classificação, um desafio semiótico. As conclusões do AO 90 foram traçadas, quer numa bissectriz contrária à doutrina, quer numa trissectriz que ignora a realidade. A propósito, "bissectriz", segundo o AO 90, passa a "bissetriz", mantendo-se, contudo, "trissectriz". Porquê? Perguntai aos autores do AO 90, que assim decidem em Vocabulário, ou olhai os lírios do campo e obtereis a mesma resposta.

O AO 90 limita-se a ignorar toda a doutrina, pretendendo-se parecer, mas sem método visível para sequer o parecer. Ao contrário do ornitorrinco, que tem acção benigna no meio que o envolve, o AO 90 apenas se distingue por ser diferente. Autor de Demanda, Deriva, Desastre - os três dês do Acordo Ortográfico (Textiverso, 2009)

1) http://www.ox.ac.uk/branding_toolkit/writing_and_style_guide/spelling.html

2) http://ual.stanford.edu/pdf/pwr_boothestyleguide.pdf

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