José Vítor Malheiros, Público
A ferramenta existe e o público usa-a. Falta que as elites portuguesas façam a sua parte.
Estive há uns meses num jantar onde muitos dos convivas eram professores e onde, às tantas, se começou a falar da Wikipédia. O tom geral era um lamento do tipo "agora-os-estudantes-copiam-tudo-da-Wikipedia-e-os-trabalhos-só-têm-disparates". Depois de algumas perguntas, percebi que a esmagadora maioria dos presentes nunca tinha sequer consultado a Wikipédia, mas sabia que era uma enciclopédia online onde toda a gente podia escrever e concluía por esse facto que se tratava da mais monumental colecção de disparates jamais coligida pelo espírito humano, uma espécie de anti-Cristo do saber, uma mancha negra com que o Maligno estava a inundar a Internet e da qual era preciso proteger os jovens espíritos maleáveis.
Esta ideia persiste ainda em muitos espíritos e, curiosamente, em particular no meio dos professores, que combatem infrutiferamente a epidemia de cópias "da Internet" nos trabalhos escolares de todos os graus de ensino.
A verdade, porém, tem outras facetas. E uma delas é que a Wikipédia é um instrumento cuja qualidade média é elevada - muito boa ou excelente em muitos casos - e que constitui um salto na promoção e na difusão do saber comparável apenas à construção da biblioteca de Alexandria, ao movimento dos Encyclopédistes ou à Escola Republicana.
A Wikipédia, que comemora dez anos esta semana, tornou-se uma funcionalidade central da Internet - tanto como o Google, mas com a diferença de que há outros motores de pesquisa equivalentes e não há outra Wikipédia. Hoje em dia, a maior parte das pesquisas que fazemos na Internet tem uma entrada da Wikipédia no topo dos resultados. E há centenas de milhões de utilizadores que a utilizam regularmente.
Que haja uma biblioteca que tenha este êxito, que milhões de pessoas se habituaram a consultar diariamente, para tirar dúvidas de trabalho, para satisfazer curiosidades fúteis, para saber mais, devia ser visto como uma felicidade. Que esta biblioteca esteja em cima de tantas mesas 24/7 e que seja gratuita, devia ser visto como uma bênção.
É evidente que existem cuidados a ter no uso da Wikipédia e que, como qualquer outra ferramenta, é preciso conhecer as suas limitações, mas o principal problema com a Wikipédia em português é que muitos criticam mas poucos trabalham para a melhorar.
É que, quando digo que a Wikipédia é excelente estou a falar da Wikipédia em geral e da Wikipédia em língua inglesa em particular - mas a Wikipédia em português é fraquinha. Só que a responsabilidade disso é... exactamente dos mesmos profissionais que se queixam da sua falta de qualidade. Dos professores, dos cientistas, dos jornalistas, dos médicos, dos advogados, das universidades, das outras escolas, das organizações profissionais.
Na era da Internet, quando a Wikipédia se transformou numa ferramenta de acesso universal à informação de todos os tipos, de uma forma simples e democrática, não é aceitável que haja tanto saber produzido por dinheiros públicos que não seja vertido pelo menos em parte para estas páginas - onde pode ser encontrado, acedido, usado e enriquecido por todos. Seria normal que as escolas de todos os graus de ensino (com destaque para o ensino superior), os institutos públicos e as instituições de investigação portuguesas fossem contribuintes regulares da Wikipédia - como acontece nos Estados Unidos. Seria normal que escrever uma entrada para a Wikipédia fosse um projecto comum nas universidades portuguesas. Mas não é. A ferramenta já existe, o público já a usa. Só falta que as elites se disponham a fazer a sua parte para melhorar o que existe, em vez de se remeterem à crítica sobranceira e distante.
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