16.08.2009, Manuel Carvalho, Público
Está na hora de se perguntar se a divulgação diária de casos e a sua constante exposição nos órgãos de comunicação social são gestos úteis para os cidadãos ou se, pelo contrário, servem para alimentar a irracionalidade e a histeria.
Aministra da Saúde já foi justamente elogiada neste espaço pela disponibilidade, competência e serenidade com que foi comunicado o evoluir da Gripe A em Portugal. Está na hora de se perguntar se a divulgação diária de casos e a sua constante exposição nos órgãos de comunicação social são gestos úteis para os cidadãos ou se, pelo contrário, servem para alimentar a irracionalidade e a histeria. Uma coisa é encarar um fenómeno novo e prestar todas as informações que ajudem as pessoas a encarar com serenidade as perturbações quotidianas que se avizinham; outra bastante diferente é insistir diariamente na actualização de uma contabilidade que, até ao momento, se repete como um ritual sem ter nada de novo - toda a gente pôde saber no devido tempo que o número de infecções iria acelerar-se com o passar dos meses e que irá culminar no Inverno com uma situação epidémica.
Do que por agora se pode suspeitar é que Ana Jorge e os altos responsáveis do ministério não conseguem deixar de alimentar o monstro que eles próprios criaram. Depois de habituaram os órgãos de comunicação social e os cidadãos a informações diárias, seria obviamente difícil suspendê-las no exacto momento em que o número de novos casos ultrapassa a centena. Os custos desta cedência, porém, são evidentes. Se nos primeiros dias do exercício a contabilização de casos não retratava um cenário preocupante, até porque em causa estavam infecções contraídas no estrangeiro, na última semana a situação alterou-se radicalmente. No dia 7 tínhamos chegado aos 500 novos casos e é muito provável que no espaço de uma semana de ultrapassem os mil. E o que inicialmente representava uma obrigação de transparência indispensável para que os cidadãos aprendessem a lidar com o fenómeno e a cumprir regras básicas de contenção, corre o risco de contribuir para a criação de um clima de medo que só complica a situação.
Não é preciso reler A Peste, de Albert Camus, para nos recordarmos como as epidemias criam um clima de irracionalidade que mobiliza os piores instintos das pessoas. A ministra já deu exemplo de um caso desses na semana passada e é muito natural que muitos outros aconteçam quando não houver 150, mas cinco mil infecções diárias. O teste que todos teremos de passar nos próximos meses vai servir para avaliarmos os nossos índices de civismo e de respeito mútuo, que a crise e dez anos de fracasso colectivo estão, naturalmente, a pôr em causa. E também a nossa capacidade de separar os perigos reais da Gripe A dos medos imaginários que o uso de expressões como "infecção", "contágio" ou "epidemia" suscitam.
Ninguém espere que uma mãe com um filho num infantário onde há crianças infectadas aja como se nada se passasse. Mas entre a preocupação e o pânico há uma enorme fronteira que só a informação fiável e a confiança em quem presta essa informação podem manter em níveis sensatos. Para que esse objectivo se cumpra, o Ministério da Saúde tem de afinar a sua estratégia de comunicação, os jornais e as televisões têm de informar sem ceder à histeria ou ao pânico que episodicamente hão-de acontecer e os cidadãos têm de perceber (e a maioria já percebeu) que a Gripe A não é a gripe espanhola e muito menos nenhuma das pestes medievais (como a peste bubónica) que augura um cataclismo social. Todos teremos de saber e de repetir (como o PÚBLICO fez na sua edição de sexta-feira) que no ano passado houve 700 mil portugueses infectados com a gripe sazonal e que a doença provocou a morte de 1900 pessoas, sem que essa ocorrência natural da vida nos tenha alterado o dia-a-dia. Todos teremos também de olhar para o que se passa em países onde a epidemia está perto do seu auge, como no Reino Unido ou em Espanha, e tentar manter a calma que as pessoas exibem todos os dias. Se deixarmos alastrar os comportamentos histéricos ou atitudes criminosas como a que Ana Jorge denunciou, estaremos a dificultar a superação do problema e a dar de nós um deplorável retrato enquanto comunidade.
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