12 fevereiro, 2005

Religião e política

Henrique Monteiro, em Cartas Abertas, no Expresso:


O Crime do Padre Lereno

Lisboa, 7/2/2005

Exmo Senhor Padre Lereno

Eu sou daquelas pessoas, senhor Prior, que, pela avançada idade, o frio e a falta de transportes, ouço sempre a missinha em casa. Foi por isso que o ouvi a si e lhe bebi as palavras avisadas que deixou nesta época de eleições, que por sinal é também a do início da Quaresma, mas não sei se a Quaresma lhe interessa, porque na Quaresma, já se sabe, há sempre a mesma coisa a dizer, ele é o jejum e a abstinência, elas são as Vias Sacras, e o trabalho de um padre duplica, sem que a recompensa aumente. Além do mais, na Quaresma sabe-se antecipadamente quem ganha e quem perde (e nisso é parecida com as eleições em Portugal), mas sabe-se também como perde quem perde e como ganha quem ganha. E até - muito bonito, mas também muito repetitivo - sabe-se que quem parece perder, afinal ganha, e que quem parece ganhar, afinal perde.

Por tudo isto ouvi-o com muito mais interesse a falar de eleições do que, se porventura, tivesse falado na Quaresma que aí vinha. É que eu da Quaresma ouço falar todos os anos e de eleições, do modo claro como o senhor Prior falou, já não se ouvia há mais de 20 anos (e quase sempre na Beira Alta ou em Trás-os-Montes, quase nunca nas cidades e menos ainda em Lisboa).

Mas o senhor Padre Lereno deixou-me com um problema que eu não sei resolver. À frente lhe direi qual. Vamos aos factos:

Logo de início, afirmou uma coisa com a qual eu concordo - que deve um cristão aprovar por voto uma ética que não seja indigna de si próprio. O problema é que a partir daí disse logo: o aborto, não!

E eu, obediente, risquei o Bloco, o PCP e meio PS!

Depois, o senhor Padre com igual convicção, disse: o divórcio, não!

E eu, obediente, risquei a outra metade do PS e mais o engº Sócrates e o dr. Santana Lopes que são ambos divorciados, além de me ter penitenciado por ter votado Sá Carneiro e Jorge Sampaio, eles também separados do primeiro matrimónio.

Mas, ainda insatisfeito, acrescentou o senhor Prior: a família, o matrimónio, sim!

E eu aí risquei os que nunca foram casados e nunca constituíram família: o dr. Mota Amaral, o dr. Paulo Portas, o sr. Padre Lereno e o nosso Bispo José.

E, por último, o senhor Prior exclamou: a homossexualidade, não!

E era escusado, porque além de poder ser considerada, no âmbito desta campanha, uma insinuação, já não havia ninguém para riscar. O pessoal já estava todo condenado e eu sem um único partido para votar, um partidito que não seja indigno de mim. Nem em si, senhor Padre Lereno, eu votaria! Isto quando a gente se põe a pensar é o diabo!

Outra hipótese - e talvez até seja a melhor - é eu votar num qualquer, em quem me apetece, que depois o senhor Padre me há-de absolver na confissão...

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