Pedro Lomba, Público
A última sessão do Parlamento no fim da I República acabou sem quórum. Tal era o descrédito da casa que os deputados resolveram não comparecer. A última sessão do Parlamento ontem, no fim de Sócrates ou no princípio do fim de Sócrates, acabou quase sem Governo. As sumidades da governação eclipsaram-se. Sócrates saiu de cena logo que Teixeira dos Santos acabou de falar. E Teixeira dos Santos nem se dignou ouvir Manuela Ferreira Leite. Ambos assumiram o registo de provocação constitucional em que têm vivido há muito tempo e que usaram para esconder o PEC IV da Assembleia, do Presidente, dos parceiros sociais, de toda a opinião pública. Foi de propósito. Ambos desejaram ter este fim.
Participar no debate com os deputados sobre o novo PEC era uma responsabilidade elementar do primeiro-ministro. O seu poder deriva do Parlamento. O seu dever é ouvir; e ouvir críticas, censuras, condenações, é também uma forma de ser responsabilizado. Mas como esperar responsabilidade de um governo e de um primeiro-ministro que aproveitaram a oportunidade do PEC IV para precisamente falsificarem e manipularem a responsabilidade pelo fracasso da sua governação?
Convém estarmos atentos ao que se está a passar. Muita manipulação e desinformação se prepara. Sócrates, como de costume, está a tentar o seu próprio branqueamento por ter conduzido o país para a bancarrota. Tornou-se um fugitivo que procura escapar pela única frincha que as circunstâncias permitem, atirando o ónus do que aí vem, da crise, da intervenção externa - como se o país não estivesse há muito tempo em crise - para os seus sucessores. O seu pedido de demissão é uma fuga, um artifício para torpedear a possibilidade de os portugueses o responsabilizarem.
É disto que se trata. Mas quem é que deverá ser responsabilizado por este momento crítico senão Sócrates? Quem é que nos governou nos últimos seis anos? Quem é que escondeu a situação real das contas públicas, quem contra todos os avisos e ameaças persistiu cegamente no erro e na mentira? E não foi Sócrates que apresentou PEC sucessivos com a colaboração do principal partido da oposição, ao mesmo tempo que não os cumpria? Não foi Sócrates que, dizendo agora "ou nós ou o FMI", finge que Portugal já tem recorrido à ajuda externa do Banco Central Europeu? Não foi Sócrates que atiçou a desconfiança dos mercados, expropriando Portugal da sua liberdade e independência?
Tem sido esta a admirável estabilidade de Sócrates. E é desta mesma estabilidade que ele agora se proclama curador. Entre uma estabilidade destrutiva e uma clarificação urgente, há alguém que não prefire a clarificação?
Era assim que tudo fatalmente acabaria. Com um primeiro-ministro acossado e em fuga, recorrendo a todos os truques para falsificar a sua responsabilidade, vitimizando-se e com um PS domesticado e desesperado por salvar o que resta.
Quem quiser perceber a manobra fugitiva de Sócrates que leia um texto do cientista político espanhol José Maria Maravall "Responsabilidade e manipulação" (está disponível na Internet). O caso estudado por Maravall é a conduta do PSOE espanhol nos anos 80. Para manipular o processo de responsabilização política pelos eleitores, os media foram apertados; escondeu-se informação relevante que permitisse acompanhar o Governo; falsearam-se os resultados das políticas governamentais; o partido começou a viver com férrea disciplina e centralismo para aparecer artificialmente unido na crise, culpou-se a oposição pelo que fez e não fez; o Governo apresentou as suas políticas como necessárias e inevitáveis.
Sócrates abraçou em absoluto esta retórica da manipulação da responsabilidade. É a sua única saída. A responsabilidade não é dele, é de outros. A crise não é dele, é de outros. Muito haverá para dizer sobre este período deletério que Sócrates encarna na nossa política. Um dia perguntaremos como foi possível.
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