José Vítor Malheiros, Público
Pela primeira vez desde a invenção do progresso, não há razões para acreditar que os nossos filhos vão viver melhor do que nós.
Nem sempre na história se teve a noção de que era possível fazer do futuro um sítio melhor para os nossos filhos viverem. E muito menos os homens imaginavam que esse fosse o seu principal dever cívico ou que essa melhoria pudesse abranger toda a sociedade. O futuro podia ser melhor porque era possível acumular poder e riquezas, experiência e saber, mas esses acidentes, se podiam acontecer, conjugavam-se sempre no singular e eram singulares eles próprios. O futuro foi, durante a maior parte da história, uma continuação do presente ou uma repetição cíclica do passado e, quando era sonhado, tomava geralmente a forma de uma revisitação de uma Idade de Ouro perdida e que talvez nunca fosse possível recuperar. Por poderoso que o mito prometeico tenha sido ao longo de séculos, o conceito de construção do futuro, de constante melhoria, a moderna ideia de progresso tem escassos trezentos anos, com proeminentes precursores a abrir o caminho a Voltaire, a Kant e a Marx.
Isto significa que, de há trezentos anos para cá, se tornou comum aspirar a que os nossos filhos tivessem uma vida melhor do que nós. E não apenas os nossos filhos, mas todos os filhos. Não era apenas possível aspirar a isso; era também razoável esperar que isso acontecesse. Essa parecia a evolução natural das coisas. Tudo permitia esperar que os filhos tivessem uma vida melhor do que os pais não só em termos materiais mas também em termos espirituais, com maior liberdade e mais acesso à cultura.
Hoje, vivemos um momento inédito na nossa civilização. Pela primeira vez desde que se inventou o progresso, não vemos razões para acreditar que os nossos filhos vão viver melhor do que nós ou num mundo melhor do que o nosso, com mais bem-estar, mais paz e mais liberdade. E os nossos filhos também não vêem.
Sabemos que esse mundo é possível, sabemos que há ferramentas que permitem construir esse mundo, descobrimos aqui e ali pequenos exemplos desse mundo, sabemos como se faz, conhecemos inúmeras armadilhas que podemos evitar, sabemos como a guerra é destruidora, sabemos como a liberdade é preciosa, ensinámos milhões a sonhar e a criar, produzimos suficientes alimentos para acabar com a fome e suficientes medicamentos para salvar as vidas de milhões. Sabemos como se produzem bens e como se inventa, temos muito boas ideias sobre a melhor forma de organizar uma empresa, uma aldeia ou uma escola, sabemos que a liberdade de expressão e de reunião não só fazem bem à alma como geram as melhores soluções, como nos ensinou John Stuart Mill. Percebemos o que quer dizer liberdade, igualdade e fraternidade. Inventámos as mais fantásticas tecnologias e até nos sabemos organizar sem chefes.
E, apesar de tudo isso, vemos as desigualdades aumentarem, o espaço da cidadania encolher, os privilégios das oligarquias reforçarem-se, o apelido valer mais que a competência, a corrupção instalar-se, a justiça desviar os olhos dos poderosos e pôr na cadeia o autor de um graffito, um diploma passado ao domingo valer mais do que um passado à segunda-feira, os salários a diminuírem e os lucros dos bancos a engrossarem, os prejuízos nacionalizados e os lucros privatizados, o desemprego a subir e os salários dos jotas a crescer, a Segurança Social a pagar pensões de miséria a uns e várias pensões de luxo a outros - tudo enquanto nos louvam as vantagens da flexibilidade laboral, do despedimento fácil, nos explicam que os salários portugueses estão demasiado altos, que os nossos call centers têm o melhor nível de escolaridade do mundo, que as manifestações só se devem fazer no Norte de África, que a democracia prejudica a produtividade e que os direitos dos trabalhadores são a razão do nosso atraso.
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