15 dezembro, 2009

Além da dor


Rui Tavares, Público

A eficácia da greve de fome não tem uma explicação fácil. Ela é paradoxal na medida em que, num dado conflito, oferece ao adversário aquilo que ele mais deseja - o nosso enfraquecimento. Mais ainda: nesse conflito, a greve de fome oferece o enfraquecimento da parte que já é a mais fraca. Quem está a ganhar não faz greve de fome. Mas para quem está a perder ela pode ser a última opção. Quanto mais debilitado fica o perdedor, mais desumano e inflexível parece o ganhador. O perdedor ganha com a sua fraqueza; o ganhador perde com a sua força. As questões morais conseguem assim inverter, momentaneamente, a polaridade política.

A greve de fome precisa de tempo. Ela dá a todos ocasião de ponderar posições, temperar atitudes, saber de que lado se deseja estar. Mas, à medida que se prolonga, a sua urgência ruge. Ninguém mais sabe quanto tempo aguentará aquela vida e cada momento de teimosia (por parte dos responsáveis) ou de inacção (por parte de todos nós) se torna intolerável. Amanhã fará um mês desde que Aminatu Haidar, activista da causa da autodeterminação sarauí e mulher de saúde débil, iniciou uma greve de fome. Não sei se ela estará viva quando esta crónica for publicada - o que quer dizer que eu já deveria tê-la escrito antes.

É importante para a eficácia da greve de fome que as reivindicações em causa sejam razoáveis, além de justas. Independentemente do que acharmos sobre a causa que Aminatu Haidar defende (já lá vamos), reconheça-se que a sua reivindicação é das mais razoáveis: que a deixem voltar para a sua cidade e a sua família.

Ao fazê-lo, ela não mata nem força ninguém, a não ser a si mesma. As armas que ela usa não são suas, mas nossas: as do nosso desconforto, da nossa vergonha, do nosso sentimento de culpa. Se aquela pessoa morrer será porque alguém não fez algo - e porque todos não fizeram tudo o que deveriam ter feito. A greve de fome faz de nós co-responsáveis. Os motivos que levam às greves de fome são por vezes brutais e desumanos; mas as razões pelas quais elas às vezes funcionam são daquelas que nos fazem acreditar que afinal sempre há uma humanidade com emoções e sentimentos comuns (oxalá).

O cabo Bojador é talvez o ponto mais conhecido da terra de Aminatu Haidar, a uns duzentos quilómetros para sul da cidade onde vive, a capital El Aaiún. Para os portugueses é-o certamente, por causa dos Descobrimentos e de dois versos de Fernando Pessoa: "Quem quer passar além do Bojador/ Tem que passar além da dor."

O Reino de Marrocos passou além do Bojador em 1976, invadindo o território do Sara Ocidental ao aproveitar uma descolonização mal-amanhada por parte de Espanha, que o administrava. Dessa vez foi fácil. Manter o país do cabo Bojador foi mais difícil; centenas de milhares de tropas e um conflito prolongadíssimo com os sarauís que teimosamente pretendem a autodeterminação. Mais difícil ainda será sair de lá. (Sim - é uma história quase igual à de Timor-Leste, que conhecemos tão bem.)

Tal como no poema de Pessoa, nunca é o Bojador físico o cabo mais importante, mas o Bojador metafórico e mental. O Bojador das nossas limitações, o mais difícil de todos. Para nós, é o Bojador da indiferença, da vontade de não ligar. Para Marrocos (tal como para a Indonésia antes da independência de Timor), o Bojador da teimosia, do medo de perder a face, do temor de aparecer fraco.

Enquanto Aminatu passa além da dor, todos temos os nossos cabos por dobrar.


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