Rui Tavares, Público
Em todas as guerras acontece isto: a morte de um soldado ocidental, particularmente no início, merece primeira página nos jornais e longas transmissões nos telejornais. A morte de muitos civis do país invadido, particularmente quando se banalizam, torna-se invisível e inconveniente, um assunto desagradável de referir. E, se é desagradável, rapidamente deixa de ser referido.
Sabemos que é assim. E também sabemos que não pode ser bom que seja assim. Podemos justificá-lo com muitas razões. Mas sabemos, no fundo de nós, que são justificações que não nos satisfazem. Podemos até habituar-nos. Mas sabemos que há algo de profundamente errado e imoral em ignorar a morte e o sofrimento no país invadido. E, porém, sabemos que o fazemos. E raramente surge uma pessoa que nos obriga a encará-lo.
Este fim-de-semana ouvi uma mulher de 31 anos, chamada Malalai Joya, dizer algo como isto: "O povo afegão - o meu povo - sangra e sofre como qualquer outro, mas o sofrimento dele tornou-se invisível, porque não se pode questionar a ocupação."
Talvez fosse fácil desvalorizar as palavras dela se Malalai Joya fosse uma fundamentalista ou uma herdeira dos taliban. Nem vale a pena ir por aí, porque não é. Deputada na Assembleia Constituinte aos 25 anos, não esteve lá para compor o ramalhete; fez um discurso em que se perguntava como seria possível reconstruir o Afeganistão colocando os "senhores da guerra" no poder. Numa assembleia em que até essa expressão era tabu, Malalai Joya foi imediatamente expulsa. Eleita na sua província, regressou ao Parlamento, mas tem vivido clandestina, sob ameaças de morte e suspensões. Aos taliban chama assassinos de mulheres e gente "medieval". Até aí tudo bem. Aos governantes chama corruptos e coniventes. Até aí, menos mal. Mas não poupa os ocidentais - e é aí que a coisa começa a complicar-se.
Ao ouvi-la, pensei: desde que nasci que ouço falar do Afeganistão. Há sempre uma guerra por lá - a dos soviéticos, a guerra civil, o regime taliban, a invasão ocidental. Já ouvi russos, americanos e ingleses - e até iranianos e paquistaneses - explicar o que se deve fazer ao Afeganistão. E creio que só agora estou a ouvir uma afegã - mulher, democrática e muito corajosa - dizer o que não se deve fazer à sua terra.
Entretanto, a situação no país está cada vez mais igual - como dizê-lo? -, igual ao que sempre foi. Além dos senhores da guerra e dos corruptos, até os taliban são cooptados para entrar no poder. Os democratas - a própria Malalai o afirma - contam-se pelos dedos das mãos e só seriam apoiados se dissessem o que queremos ouvir. A fraude eleitoral faz-se nas barbas dos aliados e a guerra, se não lhe quiserem chamar perdida, pensem então nisto: nem sabemos o que seria uma vitória ali. E esta situação intratável é aquilo que nós somos chamados a preservar.
Às alternativas de Malalai não se pode chamar solução: pedir desculpas aos afegãos, retirar tropas, impedir a participação das potências vizinhas em forças de paz, apoiar o desarmamento, a escolarização e as forças democráticas incipientes. São caminhos difíceis, e com prognóstico muito difícil.
Mas o caminho actual não presume alternativas e, como tal, está a tornar-se numa edição refundida e ampliada de todos os erros e disparates do passado. Quanto mais tarde o reconhecermos, pior será.