Rui Tavares, Público
Ainda não faz dois meses, um grupo de jovens "guerrilheiros simbólicos" subiu à varanda da Câmara Municipal de Lisboa para aí substituir a bandeira da República pela monárquica. Na altura, argumentei numa destas crónicas que eles se tinham limitado a prestar uma involuntária vassalagem ao simbolismo da República. O que os jovens monárquicos tinham feito era ritualizar - ou seja, repetir os gestos - da proclamação da República; e a ritualização é uma forma de homenagem.
Chegado o dia do 99º aniversário da República Portuguesa, eis que a pior machadada contra este simbolismo foi desferida - nem mais nem menos - pelo Presidente da dita República.
(É sempre assim, não é? E aqui está um pensamento perturbador: não há piores inimigo de um sistema do que os seus principais agentes. Não esperem que os monárquicos belisquem o simbolismo republicano; para isso está cá o Presidente da República. Não peçam aos comunistas para destruir o capitalismo; os banqueiros dão cabo dele muito mais depressa.)
Que fez Cavaco Silva? Ao retirar o seu discurso dos Paços do Concelho de Lisboa, onde a República foi proclamada e é tradição os presidentes discursarem, demonstrou menos respeito pelo simbolismo republicano do que os jovens monárquicos que é suposto combaterem-no. Ao mudar esse discurso para o Palácio de Belém, levou a República a prestar-lhe vassalagem a ele no dia em que era suposto ser ele a prestar homenagem à República - prestar homenagem à história da República que começou ali e de que ele é apenas uma parte. Como disseram vários blogues, o que Cavaco Silva fez foi transformar o Dia da República em Dia da Presidência. Nada que espante em alguém que nunca teve grande sensibilidade interpretativa que, em sentido lato, é sensibilidade cultural.
Isto já seria suficientemente mau. Receio que pior ainda seja a razão apresentada. Por causa da proximidade com as eleições autárquicas, alega-se, Cavaco Silva considerou que discursar da varanda de uma câmara municipal o colocaria numa situação de parcialidade indesejável.
Ora, daquela varanda foi proclamada (e não por acaso) a República que naquele dia se comemorava. Na sua ânsia de se afastar de tudo e de todos, com medo sabe-se lá de que contágio, Cavaco Silva acabou por perder a melhor das oportunidades para fazer pedagogia democrática, enaltecendo o valor das eleições autárquicas.
Falando aos portugueses a partir da varanda, Cavaco Silva lembraria que a República começou numa câmara municipal. E diria, por exemplo, que, embora ela faça 99 anos no país, naquela câmara municipal já tem mais de cem anos.
Sim, notaria ele, a primeira vitória dos republicanos, ainda antes de haver República no país, foi nas eleições para a vereação de Lisboa que se realizou pouco mais de um ano antes do 5 de Outubro de 1910. E - para que ficasse claro que falava para todo o país e não só para a capital - explicaria que as eleições locais são cruciais porque as cidades - e as vilas, e as aldeias - são os primeiros laboratórios da política.
E poderia terminar dizendo que, após um ano de três eleições, desejaria que os portugueses não se revelassem cansados de política. Porque a política começa e acaba sempre perto de nós. E porque, como vemos, na varanda de uma qualquer câmara municipal do país pode caber desde a resolução do problema mais prosaico à proclamação do mais alto idealismo.
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