A avaliação dos professores incendiou o país. O movimento que de norte a sul do país se tem gerado, e em muitos casos com contornos muito espontâneos, não pode deixar de ser interpretado como a assunção de uma nova postura em termos de cidadania, com implicações na construção do nosso futuro colectivo.
Em qualquer modelo de avaliação há um conjunto de interrogações primordiais que urge equacionar, sob pena de se cometerem os mais variados atropelos, e que se podem resumir nas seguintes: porquê avaliar, o que avaliar, como aliar, quando avaliar.
A razão de ser da avaliação legitima-se pelas funções que desempenha, e estas não podem ser dissociadas dos restantes elementos do processo de avaliação. O tipo de enfoque ou o uso que se faz dos resultados da avaliação condiciona e determina não só (a informação que se recolhe, mas também os meios utilizados nessa recolha. Por isso, o que se avalia e o modo como se avalia são duas ordens de questões que são susceptíveis de não serem satisfatoriamente equacionadas quando se esbate a função que preside à avaliação.
O que é que está em causa nesta avaliação? Em primeiro lugar isto: “a avaliação do desempenho é obrigatoriamente considerada para efeitos de progressão e acesso na carreira”. É seguramente esta a pedra de toque de toda a avaliação. Se fosse possível retirar-lhe esta carga sumativa, e perspectivá-la com uma função eminentemente formativa, de imediato assumiria contornos totalmente distintos.
Por outro lado, afirma-se que “a avaliação de desempenho do pessoal docente visa a melhoria dos resultados escolares dos alunos e da qualidade das aprendizagens”. Há aqui um equívoco estrutural, ao confundir-se desempenho com eficácia. O desempenho do professor diz respeito ao seu comportamento no trabalho. Por isso, o desempenho refere-se mais ao que o professor faz do que ao que pode fazer isto é, ao quão competente é. Sendo específico à situação de trabalho, o desempenho depende da competência do docente, do contexto em que o professor trabalha e da sua habilidade para aplicar as competências em qualquer momento. Deste modo, o desempenho aparece associado à qualidade do acto de ensinar.
Por sua vez a eficácia do professor refere-se ao efeito que o desempenho do professor tem nos alunos. A eficácia depende não só da competência e do desempenho, mas também das respostas dos alunos. Do mesmo modo que a competência não pode predizer o desempenho em diferentes situações, também o desempenho não pode predizer os resultados em situações distintas.
É diferente avaliar a qualidade do professor, isto é, a sua competência, a qualidade do seu ensino, isto é, o seu desempenho; ou a qualidade do professor e do seu ensino em relação aos resultados dos alunos, isto é, a eficácia do professor. Na citação que anteriormente referimos, o que se pretende avaliar é a eficácia e não o desempenho. Ora, sendo coisas distintas, não se podem avaliar pelos mesmos critérios.
O concurso para professor titular deixou mazelas que dificilmente serão saradas. Os critérios utilizados nesse concurso primaram pela insensatez e cabotinice. Por isso, não é de estranhar que uma parte significativa do presente mal-estar docente resida aqui, na divisão artificial e arbitrária, que a partir de então se gerou. Grande parte dos que vão ser avaliados não reconhece nos avaliadores (professores titulares) competência para tal. Este facto não só inquina o sistema de avaliação como provoca o seu total descrédito.
Conceber um modelo de avaliação que se repete de dois em dois anos é revelar falta de lucidez intelectual, moral e política. As incomensuráveis tarefas a que avaliadores e avaliados têm que se sujeitar, deixa pouca margem de manobra e de tempo para o que é verdadeiramente essencial na função docente.
Muito haveria a dizer quanto ao que se avalia e ao modo como se avalia. Vamos somente referenciar alguns contra-sensos.
O critério “classificação nas provas de avaliação externa e respectiva diferença relativamente às classificações internas” não só não é aplicável a todos os professores e a todas as disciplinas, como nunca será possível estabelecer parâmetros justos a partir dos quais se possa afirmar qual o contributo do professor para a maior ou menor diferença verificada na duas classificações. Estamos em pleno reino da arbitrariedade.
Como se avalia o contributo do professor para a prevenção e redução do abandono escolar? Um docente pode empenhar-se muito e “perder” um número significativo de alunos, enquanto que um outro docente não se empenha e “não perde” nenhum aluno. Como se classifica cada um deles? O que vale mais? O contributo, o esforço ou a taxa de abandono?
Situação semelhante se verifica no indicador “progresso dos resultados escolares dos alunos”. Que tipo de progresso é este? É calculado em que base? Que contas é necessário fazer em relação a cada aluno, a cada turma, a cada disciplina, a cada ano, para se dar a ilusão que todas as variáveis foram contempladas? Entramos no reino do misticismo pleno.
Questões semelhantes se poderiam colocar, por exemplo, em relação ao “empenhamento e a qualidade da participação do docente” e ao que isso pode significar.
Se um professor tiver a ousadia de faltar, um dia sequer, nos dois anos de serviço a que se reporta a avaliação, mancha de tal modo o seu desempenho que jamais o poderá ver classificado como Excelente. Estamos, de facto, perante um modelo de avaliação que não se destina a seres humanos.
Gonçalo Simões
(Texto enviado ao jornal Público em 5/3/2008)
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