Pedro Lomba, Público
Não faríamos justiça aos anos de Sócrates, nem compreenderíamos bem o que nos fica, se os resumíssemos a uma experiência de mau governo, ou se pensássemos só no desastre económico e social que temos pela frente. Tudo isso é grave e mais que suficiente para o afastarmos do cargo que ele ainda ocupa. Mas Sócrates não foi o primeiro, nem será o último, a cometer erros que agravaram a crise, e se ele é execrado (verdade que o mais execrado), outros foram também execrados.
O que pretendo dizer é que nestes seis anos com Sócrates no poder houve uma dimensão banal, visto que podemos esperar que os políticos encenem e se encenem e podemos esperar que usem todas as artimanhas retóricas. Essa é a banalidade que em última análise caracteriza o político nas democracias, transformando-os em criaturas maquinais que repetem guiões pré-preparados.
Mas não é a banalidade que resume estes anos. O socratismo (uso a palavra por conveniência) precisa de ser compreendido como outra coisa mais sofisticada e insidiosa que sucedeu na política portuguesa. É usual falar-se de "propaganda", "marketing", "culto da imagem", "mentira" e é verdade que os governos de Sócrates estiveram cheios disso. Podemos recorrer a palavras que foram repetidamente usadas por comentadores e políticos, mas que pecam por serem também elas imprecisas, metafóricas, ou poderem ser vistas como formas de propaganda contra a propaganda ("asfixia", "claustrofobia", "envenenamento").
O ponto principal, no entanto, reside no modo como Sócrates se colocou no nosso espaço público, essa frágil arena que serve de alicerce à democracia. Nenhum primeiro-ministro na nossa História democrática pôs em prática, com a cumplicidade e serviço de diferentes interessados, uma autêntica operação de apropriação e canibalização da esfera pública como fez José Sócrates.
Nunca se viu Sócrates esclarecer por esclarecer e informar por informar - e não faltaram ocasiões de alarme para tal. Vi-o sempre, em 2009 e agora, empenhado na codificação da mensagem, criando por métodos de propaganda e contra-informação um mundo ficcional e paralelo, para que os eleitores digerissem o que ele propunha, porque, não conhecendo eles a exacta dimensão dos factos e não sabendo mais separar entre a verdade e a mentira, restar-lhes-ia conformarem-se e aceitarem.
Como Pacheco Pereira uma vez escreveu, este é um jogo que Sócrates sabe jogar melhor do que os outros. Mas é preciso lembrar que também foi ele que encontrou as condições ideais para o jogar. O nosso sistema político foi pesadamente condicionado nos últimos 20 anos pelas televisões privadas, pela fragilidade financeira dos media e pelo crescimento de um poder económico entalado entre o público e o privado que prospera à custa das relações de favor e influência que obtém junto do poder político.
Essa correlação de forças tornou-se nesta década mais perigosa e instável. Foi ela que permitiu a Sócrates estabelecer alianças com outros poderes: o económico, financeiro e mediático; colocar os seus apaniguados nos bancos e nos media; agir obsessivo e vingativo contra os adversários; usar até não poder mais as agências de comunicação e os recursos do Estado.
A crise que ele nos deixa não está apenas nos números da economia. É uma crise do nosso reduzido estado de consciência. Sócrates venceu, porque nos pôs a pensar como ele, semiconscientes, semiadormecidos, ouvindo e falando maquinalmente. É o que nos fez seguir esta campanha como analistas de percepções e de gaffes, obcecados com a eficácia, como se fôssemos o júri de um reality show de marketing político.
De certa forma, o problema nunca foi Sócrates, mas saber que Sócrates explorou as brechas da nossa democracia, que o napalm está aí para quem o souber usar. Deixa-nos num tal desalento ético, numa tal fractura, que a reconstrução será mais difícil. Mesmo sem Sócrates, porque os seus vestígios não irão desaparecer tão cedo.
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