Pedro Lomba. Público
Há tanto contra José Sócrates e o seu Governo, contra os abusos e ocultações, a sua má gestão dos dinheiros públicos, a sua reincidência na mentira, que o mais difícil é escolher. Ontem foi o "défice oculto": 200 milhões de despesa fora da execução orçamental para iludir as contas; hoje é a confirmação de que o Ministério das Finanças recorreu mesmo ao Fundo da Segurança Social para vender dívida em Abril passado, apesar de o despacho do ministro que autorizou o negócio só ter sido publicado esta segunda-feira e apesar do desmentido oficial que foi feito na altura.
Eles continuarão a dizer que o país apanhou com a pior crise internacional dos últimos 80 anos, mas não explicam por que é que, se a crise chegou a todos, só nós e a Grécia é que estamos em recessão. Não se pode dizer que o caso contra este Governo não esteja bem provido de factos.
Mas nesta campanha Sócrates tem repetido desde o início, por sistema, por necessidade táctica, outro argumento: o "PS é o grande partido do povo". Tem dito e redito que os outros querem uma "educação para ricos e outra para pobres", "transportes para ricos e transportes para pobres"; tem insistido que os outros querem atirar os mais pobres para fora da saúde pública. Num comício em Elvas, Sócrates acusou Passos Coelho de usar um "preconceito de classe social" contra as Novas Oportunidades.
E, história amplamente comentada, para mostrar que os mais pobres estão mesmo atados à campanha socialista não hesitou em usar trabalhadores imigrantes indianos e paquistaneses, que mal falam português e nem sabiam quem ele era, como adereços de campanha a troco de lanches e dos papéis.
Agora já não é a modernidade das renováveis e do carro eléctrico, ou a plasticina da imagem e das estatísticas, agora Sócrates resolveu aparecer como um político socialista tradicional, defensor dos mais pobres e desvalidos, bramindo o estandarte da luta de classes. Depois do Sócrates sofisticado que jurava gerir o país como um empresário, negociando nas altas esferas, chegou-nos o Sócrates classista, o homem do povo, o homem dos simples.
Conheço muitos socialistas para quem esse "povo", real ou mitificado, não é uma simples fantasia nem uma arma política. Tal como não é a redução das desigualdades nem o Estado social. São pessoas, lá está, com convicções, um bem raro nos tempos que correm.
Mas ouvir Sócrates e o seu PS saltearem o medo dos pobres de sempre e dos novos pobres, ouvi-los falar em "povo" e em "classes sociais", é mais do que simplesmente trágico. É obsceno.
E nem sequer estou a falar do fim dos abonos de família, bolsas e prestações sociais. Seria demasiado óbvio. O que é preciso dizer é outra coisa de mais profundo. Sócrates e o seu PS de betinhos e instalados cavaram uma tal cratera de interesses, um tal vaivém promíscuo entre o Estado e certos grupos económicos, que de "povo", de atenção às desigualdades e até de esquerda ou de direita estes puros não têm nada.
Quando os vejo encher a boca com o "povo" e os "pobres, só me lembro dos amigos socialistas que literalmente enriqueceram nestes últimos 15 anos sob o alto patrocínio do poder do Estado. Lembro-me dos Ruis Pedros, Varas, administradores de empresas públicas, banqueiros, construtoras civis. Lembro-me de negociatas como o terminal dos contentores de Alcântara, das adjudicações directas, das Scut, das leis cozinhadas em gabinetes para servirem uns quantos destinatários. Nos anos finais do cavaquismo também havia disso. Esta esquerda dos interesses é igualzinha à direita dos interesses. Suga o país, o Estado, os que trabalham. E Sócrates assistiu a tudo, permitiu tudo, porque é feito dessa mesma massa. Luta de classes? Tenham vergonha.
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