José Vítor Malheiros, Público
O PS é uma família e não renega os seus filhos. Mesmo que Sócrates destrua o país, o partido vai continuar a gostar dele.
Apesar da imensa cobertura mediática do congresso do PS deste fim-de-semana, os media não contaram a história essencial. Refiro-me à mudança de nome do PS, que abandona a designação de Partido Socialista e passa agora a adoptar oficialmente a designação pela qual já era informalmente conhecido: Partido de Sócrates. A alteração tem o inconveniente de manter a mesma sigla, mas a designação alternativa Partido do Zé, defendida com o habitual brilho intelectual por António Vitorino, não colheu o apoio dos congressistas. O que importa é que, depois deste congresso, ficou mais clara a identidade do PS e mais bem definida a sua visão para o país.
O congresso teve momentos muito diversos e oscilou entre o ambiente de seita acossada cerrando fileiras ("Eles estão todos contra nós, mas "há-des" ver") e um tom bajulatório de exaltação caudilhista com longa tradição política. E houve um perfume retro muito bem conseguido pela produção. Só se lamenta que o Don"t cry for me Portugal que tinha sido especialmente gravado por Madonna não tenha chegado a ser exibido.
Sintomática do ambiente foi a intervenção de Jaime Gama, que, apesar de, na substância, ter posto os pontos nos ii quanto às responsabilidades do Governo e do primeiro-ministro na negociação do empréstimo à UE e FMI (Gama tem alguma sensatez), seguiu na forma o mesmo tom laudatório do líder ("os ombros de José Sócrates" devem aceitar mais esta "dificuldade", disse Gama). Podia ver-se a cruz a ser arrastada pela Via-Sacra.
Já sabíamos que no PS de Sócrates as críticas e as dissidências eram malquistas e se pagavam caro. Agora sabemos que o unanimismo foi assumido pelo partido como um valor nuclear. A justificação é o acosso da esquerda e da direita, mas os estalinistas também não tinham falta de argumentos para defender o encobrimento e a participação nos crimes do regime. Não há muitas ideias políticas mais suspeitas do que este "sigamos com uma obediência cega e num silêncio servil o nosso líder autocrático porque estamos cercados", mas foi esse o moto que o PS decidiu escolher. Tal como preferiu o deleite autocomplacente (Ana Gomes foi uma das raras excepções) ao mínimo olhar crítico sobre a realidade.
É verdade que houve intervenções que abordaram a crise política, financeira e social portuguesa, tendo apresentado aos congressistas presentes um leque de propostas estratégicas para enfrentar os problemas da nação. Só que o leque foi desde um "Zé, pá... eles querem porrada mas eles mal sabem como nós somos danados para a porrada... e então tu, caraças, pá, Zé!" até "Tu, Zé, nem sabes o orgulho que eu, caraças, tenho de estar ao teu lado, pá". Sócrates, como não podia deixar de ser, emocionou-se.
Pode dizer-se que tudo isto é compreensível. Que isto mais não é que lealdade, camaradagem, amizade, valores importantes (uma das músicas de fundo do vídeo exibido foi That"s what friends are for), mas o que o PS parece não perceber é que há valores que um partido tem de prezar mais que esses, como a honestidade, a justiça ou o bem-estar dos portugueses. Que os amigos de Sócrates lhe dêem palmadas nas costas é normal. Que o partido o reeleja para o colocar de novo à frente do Governo é irresponsável. E que o PS se compraza em ser o partido dos amigos é preocupante. Não é que os outros não sejam, mas têm um bocadito de vergonha. Ninguém pensou que seria melhor o PS apresentar-se como o partido das ideias para Portugal do que como o partido da lealdade ao chefe?
Uma das explicações para este congresso alegremente mentecapto e de glorificação do líder é, simplesmente, que alguém tenha posto alguma coisa na água. Outra explicação possível é que o PS seja só isto.