25 abril, 2004
O meu 25 de Abril
"Não discutimos Deus e a virtude. Não discutimos a Pátria e a sua história. Não discutimos a Autoridade e o seu prestígio."
António de Oliveira Salazar
A notícia chegou já tarde, próxima daquela hora do crepúsculo em que o pôr-do-sol tinha por hábito acariciar o rio Geba, proporcionando-nos fins de tarde únicos, excessivamente esplendorosos: “tinha acontecido um golpe militar em Portugal e o governo tinha caído”.
O serviço militar tinha-me apanhado a meio de um atribulado curso de Filosofia e, numa gélida noite de Dezembro de 72, a notícia chegou abruptamente: mobilizado para a Guiné. Assim, no dia 25 de Abril de 74 eu não estava na cadeia, Manuel Alegre. Mas encontrava-me, certamente, no meu posto. Jabadá, algures no interior da Guiné, passou a ser um cárcere de uma outra natureza, a partir de Janeiro de 73.
Situada à beira do rio Geba, Jabadá era uma aldeia de tamanho médio. Na orla das tabancas, espalhavam-se, em espaços irregulares, os postos do aquartelamento. Era aí que vivíamos, com uma constante sensação de insegurança a escorrer-nos pelo corpo, pois sentíamos que a nossa vida se encontrava sobejamente desprotegida. E nem o invólucro criado pelas fiadas de arame farpado, que envolviam todo o perímetro do casario, atenuavam aquela sensação.
Naquela noite, cheguei junto do Silva, o capitão, e disse-lhe: “Não volto a sair para a mata. Para mim a guerra acabou.”
Naquele tempo, e com a nossa idade, não discutíamos Deus porque havia demasiadas coisas para viver, e ainda não tínhamos aprendido a ser ateus. Mas discutíamos, ao nosso modo, a Pátria e a Autoridade. Fomos apanhados, em plena flor da idade, por um sistema político que, para defender as então “colónias” portuguesas, enviava para África os seus jovens.
Tínhamos então 21/22 anos e nada havíamos feito para merecer tal castigo. A maior parte de nós possuía uma formação política absolutamente estéril. Pouco conseguíamos vislumbrar por detrás de siglas como MPLA, UNITA; PAIGC, etc. Mas, em matéria de Pátria, estávamos conversados: Cabo Verde, Guiné, São Tomé e Príncipe, Angola, Moçambique, Timor não nos diziam absolutamente nada. Não eram a nossa terra, não eram - isso tínhamos a certeza - a nossa Pátria. Por isso, não podíamos nem tínhamos que as defender. Sentíamos que não era legítimo hipotecar a nossa vida por algo que não nos pertencia.
Assim, cada passo que se dava no interior da mata era vivido como um autêntico jogo de roleta e representava um passo a menos no regresso a Lisboa - como o pôde constatar o Malheiros. Na mata, à nossa volta, reinava uma intranquilidade constante que só podia ser colmatada com a proximidade do aquartelamento, apesar de toda a insegurança que aí vigorava. Mesmo os bombardeamentos de bazooka e morteiro de que, por vezes, éramos vítimas durante a noite, não conseguiam roubar-nos essa nesga de segurança e aconchego. O arame farpado ou um abrigo não eram meros adornos.
Mas as ordens de operações impunham-nos o constante patrulhamento da mata, com incursões em locais distantes situados no interior da floresta - ora de dia, ora de noite, ora dia e noite. O Terreiro do Paço e Bissau comungavam um mesmo desígnio: “acabar com os turras”.
Rapidamente intuímos que a nossa maneira de discutir a Pátria e a Autoridade era permanecer o mais próximo possível do aquartelamento, esquecendo as ordens de operações. Não estávamos ali para apanhar turras; muito menos para ganhar uma guerra, para ganhar medalhas, ou para ganhar o que quer que fosse. Salvar a pele e regressar sãos a casa eram o mote do nosso quotidiano. Por isso, fazíamos tudo o que pudesse salvar-nos, principalmente através do boicote das missões de que éramos incumbidos. O Silva, que coabitava connosco, - formado e promovido num daqueles cursos de aviário, que serviam para formar capitães de modo célere - não imaginava o que se passava, tão ciente estava de que comandava uma companhia composta por leais e dedicados oficiais e praças. E Bissau e Lisboa ficavam demasiadamente longe, para saberem o que se passava no terreno.
Senti, nessa noite, que o Silva tinha deixado de ser comandante da companhia quando ousei dizer-lhe: “não volto a sair para a mata”. Ele olhou-me com os seus tão característicos olhos esbugalhados, fez aquele trejeito de cabeça que nós tão bem conhecíamos (e que nos levou a apelidá-lo de “Tolinhas”) e disparou energicamente: “Mas não podes fazer isso! Ainda não recebemos ordens para acabar com a guerra”. Retorqui-lhe, num tom muito peremptório: “Para mim a guerra acabou!” – e virei-lhe as costas.
No dia 25 de Abril de 74 eu estava em Jabadá, na Guiné. Nesse dia, o pouco que soubemos sobre o que estava a suceder em Portugal, foi suficientemente grande para intuirmos o que se seguia. Nos dias seguintes as notícias foram chegando a pouco e pouco, clarificando as indefinições iniciais. A Revolução dos Cravos tinha mudado radicalmente o regime político. De facto, a guerra tinha acabado. E eu não voltei a sair para a mata.
Tínhamos conseguido sobreviver. O tão desejado regresso a casa estava assegurado.
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